Diogo Tourino de Sousa
Ao discutir a associação entre democracia e socialismo no cenário do movimento revolucionário de 1917, o economista Joseph Schumpeter formula uma instigante questão para a teoria política que resume, de alguma forma, dilemas com os quais a democracia moderna teria de conviver nas décadas seguintes. Em linhas gerais, Schumpeter se pergunta sobre a possibilidade de tomarmos decisões democráticas por meios não-democráticos, como a própria idéia de revolução poderia sugerir, cabendo, neste caso, “ao casuísta decidir se é possível fazer uma exceção para os atos não-democráticos que são perpetrados com o objetivo expresso de concretizar a verdadeira democracia, contanto que sejam os únicos meios para esse fim”. Ainda que o alvo de suas críticas em 1942 não seja mais o mesmo após duas décadas da derrubada do muro de Berlim e da efetiva imposição da democracia como a arena institucional na qual mesmo a esquerda terá de defender suas bandeiras, sua questão inscreve um problema na raiz de muitas das decisões contemporâneas.
Digo isso porque o escândalo, ou pelo menos como a grande impressa insiste em classificá-lo, desencadeado pela Operação Satiagraha executada pela Política Federal em São Paulo no início do mês de julho de 2008 não permite ao observador atento formular juízos facilmente. A operação, agora acusada de utilizar instrumentos ilícitos no andamento das investigações, resultou na prisão do ex-prefeito da cidade de São Paulo Celso Pitta, do investidor Naji Nahas e do banqueiro Daniel Dantas, do Banco Opportunity, sob a suspeita de crimes fiscais. Prisões que causaram polêmica na época, quando o presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Gilmar Mendes, questionou os procedimentos da polícia como um ato de “espetacularização” das ações que pouco condiz com o “estado de direito democrático”, especificamente terem optado os policiais pelo “uso abusivo de algemas”, o que gerou um debate entre os diversos segmentos envolvidos e o Poder Executivo, na figura do ministro da Justiça Tarso Genro, motivando revisões do pacto republicano como o recente encontro do Poderes da República atesta.
Daniel Dantas foi condenado em primeira instância pela justiça em dezembro de 2008, por tentativa de suborno, mas a Satiagraha ainda retornaria aos noticiários em diferentes momentos, permanecendo os envolvidos atualmente em evidência após a manutenção da Comissão Parlamentar de Inquérito que apura o possível uso ilegal de grampos telefônicos. Seu responsável, o delegado Protógenes Queiroz, tem sido acusado de espionar personagens públicos com o objetivo de conseguir informações que permitissem não só a condenação de Dantas, mas o andamento de outras investigações relacionadas ao Opportunity, ignorando princípios caros ao Estado de direito democrático assegurados constitucionalmente. O fato é que em pouco mais de nove meses o “encanto” parece ter se desfeito aos olhos da opinião pública e a bem sucedida ação que teria colaborado com o combate à corrupção no país passou a ser classifica por alguns veículos de comunicação como “A tenebrosa máquina de espionagem do Dr. Protógenes”, sendo ele considerado uma “mente paranóica”, conforme a edição da Revista Veja de 11 de março de 2009.
Independente de ter ou não cometidos tais arbitrariedades, até o momento a CPI dos grampos não encontrou provas que o condenem, o caso do delegado Protógenes soa como algo perturbador para as instituições democráticas inauguradas pela Carta de 1988, ao colocar sob suspeita suas conquistas e, porque não, a própria esfera da política como instrumento legítimo de representação da soberania popular. Emblemática do ponto de vista do alargamento dos direitos e da criação de mecanismos para a sua defesa sem paralelo na história do país, a Constituição reformulou também, talvez uma de suas maiores inovações, o Ministério Público e os tribunais superiores conferindo autonomia administrativa e financeira, princípio de independência entre os Poderes inescapável no cumprimento dos direitos fundamentais a serem assegurados no novo arranjo.
Tais transformações, um flerte com novas e arriscadas formas de democracia participativa pela via judicial como tem nos sugerido o prof. Werneck Vianna, forneceram à sociedade civil instrumentos inéditos para a defesa da cidadania compreendida num sentido cada vez mais amplo. Se na década de 1970 a bandeira do habeas corpus era encampada por organizações como a Ordem dos Advogados do Brasil como o principal ponto de disputa contra o regime militar, a cidadania no país encontra hoje, pouco mais de 30 anos depois, amplos direitos civis assegurados constitucionalmente, bem como a inclusão de novas conquistas no plano dos direitos trabalhistas, estendendo direitos ao trabalho doméstico, ou do consumo, como a portabilidade numérica na telefonia celular ou a simples regulação do atendimento via telemarketing. O incremento dos direitos sejam eles civis, trabalhistas, políticos e, mais recentemente, do consumo constitui um dos resultados positivos do andamento da nossa história assegurado, certamente, pela Carta de 1988.
Ainda assim, seu sucesso não sobrevive incólume aos percalços que a dinâmica da vida política brasileira tem apresentado. A crise deflagrada pelo que ficou conhecido como “escândalo do mensalão” em 2005 colocou em xeque o sistema político ao escancarar as raízes perversas do seu funcionamento regular. Denúncias sobre o uso de caixa dois nas campanhas eleitorais e a incapacidade da democracia brasileira de controlar as assimetrias do poder econômico, assimilando, por sua vez, práticas condenáveis agora utilizadas por atores que até o momento apresentavam-se como os “últimos” defensores da moralidade, corroeram a imagem da política como um todo. Fato ao qual se somou a presença constante dos agentes da Polícia Federal e procuradores do Ministério Público em sucessivas operações de combate à corrupção, prendendo prefeitos, juízes, banqueiros em ações que durante um bom tempo foram, ou ainda são, entendidas pela opinião pública como a única “chance” do país corrigir seus males profundos, independente do seu teor mais ou menos democrático.
As declarações do delegado Protógenes quando do bloqueio dos bens de Daniel Dantas pela justiça transparecem um entendimento próprio das atividades empreendidas pela Polícia Federal que, de alguma forma, questionam a representação política tradicional ao reivindicar competências que ultrapassam os limites da corporação. Segundo o delegado, o "dinheiro bloqueado [deveria] ser repatriado para o Brasil para o seu destino final de onde ele foi retirado (...) ser destinado à saúde, educação, segurança pública" (Observatório da Imprensa em 03 de abril de 2009). O que incomoda não é necessariamente a concordância ou não com o teor da declaração, mas quem a faz.
Isso porque o Dantas do Opportunity é o mesmo Dantas que recebeu um habeas corpus do STF quando preso, atitude que contrariou a opinião pública como um todo ao sugerir que o próprio Judiciário estaria compactuando com a corrupção no país, e é o mesmo Dantas que, protegido por mais uma decisão judicial depôs na CPI dos grampos acusando a Polícia Federal de manipular informações para a sua condenação. Como a sociedade brasileira pode entender tudo isso? Que o STF tem por função defender a Constituição começa a ser um dado perdido no exercício da imprensa, ávida por escândalos e pouco preocupada em discutir os problemas enfrentados nos termos adequados, ou na atuação de personagens alheios ao mundo ordenado da política, como a figura de Protógenes que se sente à vontade para jogar sistematicamente a opinião pública contra o ministro Gilmar Mendes e seus pares. Em entrevista concedida à revista Caros Amigos de dezembro de 2008 o delegado acusa o STF de contrariar “toda a opinião pública, todas as regras jurídicas, todas as normas processuais” ao conceder o habeas corpus a Dantas. O que o permite dizer isso? Talvez uma singular leitura do seu papel enquanto funcionário público que representa diretamente os interesses do povo, como sua menção ao artigo 1º da Constituição transparece, ignorando outras passagens importantes da Carta.
A idéia de que a vida política é promíscua, igualmente alardeada pelo delegado, contaminando todas as esferas do poder público, inclusive o Judiciário, traz enormes perigos para a democracia. Sem dúvida, o combate à corrupção e os avanços implementados pela Carta de 1988 devem ser compreendidos numa chave positiva. Entretanto, ao responder afirmativamente ao questionamento levantado por Schumpeter sobre a aceitação de atitudes não-democráticas para proteger a democracia nos deparamos com um problema que o economista já teria apontado, deixando o julgamento de tais atitudes ao sabor do “casuísta”. Até onde Protógenes e outros, aceitando inclusive seu comportamento como uma prática comum em casos dessa natureza, seria capaz de ir?
Decerto o modo como a imprensa tem lidado com o caso não colabora. Hoje os possíveis excessos do delegado são enfatizados em detrimento dos problemas por ele identificados, como se os crimes descobertos fossem relegados a um plano secundário. Não se trata disso! Devemos sim combater a corrupção caso queiramos resolver o problema da igualdade do acesso à política, desafio central para as democracias modernas. Entretanto, acreditar que podemos abrir margem para interpretação dos princípios fundamentais do Estado de direito democrático pode, num determinado momento, apequenar ainda mais o exercício da política ou, no limite, extinguir a democracia para “salvá-la”. Qual seria o mal maior?
O presente artigo foi publicado originalmente no
Boletim CEDES de março/abril de 2009, disponível no sítio do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES). Para ler o Boletim na íntegra,
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