quinta-feira, 27 de janeiro de 2011

Vez e voz (Coluna Cena Política - Rádio Catedral FM 102,3)

Outro dia ouvi, numa situação não muito próxima da presidenta Dilma, uma mulher, com pouco estudo e muita coragem aparente, dizer: “é importante para nós, mulheres, que tenhamos mais mulheres no poder”. Na ocasião, minha interlocutora falava sobre a sucessão de um cargo administrativo, não necessariamente ligado à política. O fato, em nada corriqueiro há alguns anos, atiçou em mim a percepção de que uma democracia se faz, realmente, de simbolismos. E a eleição de Dilma já é, neste ponto, uma conquista. Digo isso, porque independente do governo que vem pela frente sua vitória permite com que certas bandeiras, antes silenciadas, possam agora ser vocalizadas por personagens diversos da sociedade civil. Não falo apenas na questão da mulher, mas penso na possibilidade que setores excluídos têm, mais agora do que nunca, de se expressarem. Talvez o perfil de Dilma contribua. É quase consenso entre os analistas que a presidenta não desempenha o cargo investida das mesmas características do seu antecessor. Lula era presença quase certa nos noticiários, emitindo juízos sobre questões diversas e tragando, com força, a sociedade para dentro do seu governo. No governo Lula todos, ou quase todos, tiveram voz. Mas hoje, a impressão que temos é a de que a voz de todos era, no fim, a voz de Lula que soube, é certo, falar por muitos. Agora, no entanto, o país que avançou na redução da desigualdade e na ampliação do acesso a um mundo antes inatingível para a grande maioria dos excluídos, como no caso da educação superior, por exemplo, precisa andar com as próprias pernas. Se até aqui fomos guiados por um Estado, que quando benevolente nos concedia privilégios e atenção aos nossos desejos e carências, falta agora sermos capazes de correr atrás de nossas demandas de maneira autônoma. O simbolismo que cerca Dilma, a primeira mulher a ocupar a presidência da República, pode, de alguma forma, ser a centelha desse processo. Momento em que a sociedade civil fala, como fala a mulher que reivindicava mais espaço para as mulheres, que há pouco mencionei. Só assim, com o avanço da cultura cívica, a consolidação do sentimento democrático e o reforço da sociedade civil nós saberemos andar com as próprias pernas, independendo da vontade do Estado em atender ao que precisamos. O presente é bom, que o aproveitemos para um futuro melhor, onde aqueles que não podiam falar passem a ter vez e voz.

quinta-feira, 20 de janeiro de 2011

O mesmo enredo (Coluna Cena Política - Rádio Catedral FM 102,3)

O começo de um novo governo parece seguir um enredo padrão. Candidatos vitoriosos são empossados, solenidades cívicas reforçam a esperança de muitos, equipes ministeriais e secretarias são nomeadas, cargos são disputados – alguns mais, outros menos – com voracidade pelos inúmeros partidos que compõem o cenário político nacional. Por certo, o destino sempre espreita o ordinário, pronto a incomodá-lo com acontecimentos imprevistos que cobram dos atores respostas para além do enredo suposto. As chuvas deste início de ano poderiam, quem sabe, assumir esse papel de um acontecimento extraordinário. Poderiam, não fosse sua constância e o permanente desafio endêmico que circunda o problema. Ainda assim, não tardam a aparecer críticas oportunistas, identificando no presente imediato a responsabilidade pelos desastres. O desafio, porém, é maior e repousa na inescapável redução das desigualdades sociais e da pobreza e no correto planejamento do uso do espaço pelo homem. Enfrentar, de fato, o problema é uma armadilha curiosa: o corajoso governante que resolver fazê-lo não será, creio, reeleito. Sua resolução cobra medidas impopulares, como remoções e o impedimento de construções em áreas de risco, sem falar, é claro, no planejamento urbano global que em nada se aproxima do desenfreado interesse do capital imobiliário. É possível? Seguramente sim. Então o que, haja vista que a solução de um problema tão grave não deveria ser tão óbvia, nos falta? Talvez o desastre que tristemente assolou, com maior gravidade, a região serrana do estado do Rio constitua um ponto de inflexão para que a sociedade civil compreenda o seu papel. Não é de hoje que a passividade dos atores sociais enseja situações semelhantes: ante a incapacidade ou, na pior das hipóteses, a falta de vontade do poder público de enfrentar problemas que custariam tempo, dinheiro e, sobretudo, votos, a sociedade permanece ordinariamente refém do “imprevisto”. No momento, além da solidariedade e das orações, devemos compreender que daqui em diante o governo não pode mais governar sozinho, sob pena de não tomar as decisões necessárias. A sociedade deve compreender seu papel ativo no enfretamento do problema. Do contrário, assistiremos o mesmo enredo no próximo ano, como a crônica de muitas mortes anunciadas.

quinta-feira, 6 de janeiro de 2011

A Comissão da Verdade.

De todos os pronunciamentos que cercaram a posse de Dilma Rousseff, primeira mulher a assumir a Presidência da República, talvez o mais substantivo tenha sido o da ministra-chefe da Secretaria de Direitos Humanos, Maria do Rosário Nunes (PT-RS). Fora, é claro, o bom discurso proferido por Dilma no Congresso Nacional, Maria do Rosário fez mais do que floreios em seu primeiro pronunciamento a frente da Secretaria, recuperando um tema polêmico que já havia aparecido no governo Lula, quando da apresentação do seu Programa Nacional de Direitos Humanos. Trata-se da criação de uma Comissão da Verdade, responsável pela abertura dos arquivos do regime militar inaugurado em 1964. Lá atrás, Lula recuou ante a irritação das Forças Armadas acerca da possibilidade de revisão da Lei de Anistia, visto que a abertura dos arquivos poderia revelar eventuais crimes cometidos pelo regime militar, como a prática de tortura bem conhecida pela historiografia recente a partir de relatos dos sobreviventes. Sei que remexer nesse período dramático da nossa história pode causar espanto. Mas acho particularmente interessante a iniciativa da ministra Maria do Rosário de recuperar a Comissão da Verdade, com o objetivo de contar com mais dignidade a história do Brasil, preenchendo lacunas que podem evitar que episódios tristes como aquele se repitam. Não defendo a revisão da Lei de Anistia, como alguns setores da opinião apregoam. Isso poderia impedir que a “verdade” apareça. Acho, no entanto, que temos o direito de saber o que foi anistiado, quais foram os crimes cometidos, quem foram os responsáveis, quem financiou a repressão e muitas outras questões para as quais respostas dariam alento a quem sofreu. A memória de um povo não é feita só de alegrias e seus traumas podem impedir que mazelas se repitam. É oportuno Maria do Rosário retomar o tema, pois vivemos um momento cercado de simbolismos que atestam uma democracia madura, infensa aos perigos que antes colocariam em risco a sobrevivência das instituições. Pior do que nos depararmos com nossos traumas, é quando eles se tornam “tabus”, inauditos, silenciados, mas que continuam a nos ameaçar. Contemos nossa história com mais dignidade, é o que defendo.