Luiz Werneck Vianna (UERJ e CEDES)
O assassinato de Eliza Samudio em que está envolvido como suspeito o goleiro Bruno, ex-capitão do Flamengo, vencedor do último campeonato brasileiro de futebol, não deve ficar confinado às páginas do noticiário policial. O horror que ele suscita por seu enredo escabroso, a história dos personagens, a gratuidade do crime, a forma da execução - os restos mortais da vítima foram lançados a cães para serem devorados -, a presença do mal em estado bruto, tudo isso reclama que se olhe para além das patologias dos indivíduos já indiciados como culpados. Em primeiro lugar para o clube, agremiação mais que centenária, e para a estrutura do futebol, o esporte de massas que é uma paixão nacional. Em segundo, para o tipo de sociabilidade selvagem, à margem da vida civil, que se reproduz em escala crescente e que encontra na cultura do narcotráfico e do consumismo, alçado a valor supremo, os seus paradigmas.
Bruno, um dos mais altos salários do seu clube, era uma liderança, portando a braçadeira de capitão por indicação de seus dirigentes, em que pese várias manifestações arrogantes de sua parte, inclusive nas relações com o seu técnico, e já se envolvera, com alguns colegas, em escândalos públicos em festas promovidas em domínios territoriais do narcotráfico. Em uma dessas ocasiões, proferiu uma declaração em que, explicitamente, admitiu ser normal a violência física entre casais, e, embora sua agremiação desportiva fosse dirigida por uma mulher - uma ex-atleta olímpica -, manteve a honraria da braçadeira.
Registre-se, ainda, que dois companheiros de clube, como o noticiário esportivo com frequência denunciava, eram contumazes participantes de pagodes em redutos do crime organizado, um deles fotografado ao lado de marginais armados com metralhadoras, o outro levado à polícia para esclarecer relações mercantis com notórias lideranças do mundo do tráfico em favelas cariocas.
Em todos os casos, o clube optou pela contemporização, em nome certamente de uma política de resultados, uma vez que esses jogadores se notabilizavam por seus feitos nas competições. E o que importa aí é deslocar o foco para a estrutura do nosso futebol, com sua organização autocrática, dominada por um vértice que se eterniza no poder, apenas orientada para a produção de vitórias nas competições, inteiramente arredia às possibilidades de fazer do futebol, com sua penetração capilar na vida do povo, um instrumento de educação de massas.
Para ela, o futebol do país se resume a ser mais um ator no processo de globalização dessa atividade esportiva graças à qualidade dos seus praticantes, um celeiro de craques de exportação. Nesse sentido, a expressão esportiva e cultural que ele representa se encontra crescentemente contaminada pela ameaça de ser submetida inteiramente à lógica mercantil. E não à toa não se pode mais descrever a sua história atual sem incluir o papel dos empresários no recrutamento de jovens jogadores talentosos que passam a administrar suas carreiras, relegando o papel das agremiações esportivas a um lugar subordinado, quando não inteiramente ausente, na sua formação como homens e cidadãos.
Os frutos bem-sucedidos desse sistema se convertem em mercadorias do mercado globalizado do futebol, as transferências para os milionários clubes europeus, para onde migram cada vez mais jovens, significando a realização de suas carreiras. Nada mais natural que seus praticantes, desde cedo sem tempo para se dedicarem aos estudos, encapsulados na bolha do mundo do futebol, manifestem fortes opções religiosas, em geral pentecostais, aí encontrando escoras emocionais que lhes permitam suportar as pressões do mercado que condiciona suas vidas.
Sem essas escoras, seus profissionais, com uma educação formal em geral precária, muitos vindos de lares destroçados – o caso de Bruno –, se veem à mercê da cultura do consumismo, o tempo livre de jogos e treinamentos dissipados em meio a uma legião de fãs, sua presença prestigiosa disputada em pagodes e orgias em que são convidados de honra. Os clubes, indiferentes ao comportamento dos seus profissionais, cerram os olhos a seus desvios de conduta, por sua vez prisioneiros da lógica de resultados que comanda o futebol. Assim, os clubes e seus heróis do maior esporte de massas do país, que poderiam exercer um papel na difusão dos valores civis na formação da juventude, tornam-se uma vitrine a estimular o hedonismo e o comportamento narcísico.
Futebol é cultura – no nosso caso uma de suas mais vigorosas manifestações –, fazendo as vezes de uma escola moderna em que se ensina a competir sob a jurisdição de regras interpretadas por um árbitro e que são de prévio conhecimento dos seus praticantes e do seu público. Atividade generalizada na juventude do nosso país, presente no mais remoto dos rincões, a política e os partidos não podem ser estranhos a ela, esperando-se da sua intervenção a criação de regras que venham a atuar no processo de formação dos seus profissionais, que chegam a ela, em muitos casos, como pré-adolescentes. De outra parte, cabe à opinião pública, reclamar que os clubes adotem padrões de conduta que impeçam os seus atletas de manterem relações privilegiadas com o submundo da criminalidade.
Entre tantos fatos estarrecedores no caso de Bruno, está a revelação de que ele estava conscientemente envolvido com personagens e com os padrões vigentes nas redes do crime organizado. Só faltou o uso de micro-ondas na eliminação da pobre Eliza para tornar ainda mais evidente as impressões digitais da cultura do narcotráfico nesse caso.
Publicado no Jornal Valor Econômico (12 de julho de 2010)
Nenhum comentário:
Postar um comentário