Há alguns anos um triste episódio me chamou a atenção nos EUA. A passagem de um furacão destruiu a cidade de New Orleans e, semanas depois, os especialistas anunciaram o seu retorno, pedindo aos moradores das regiões afetadas que se retirassem de suas casas. Do contrário, nas palavras da governadora de um dos estados em questão, os cidadãos deveriam escrever o número da previdência social no antebraço para facilitar a identificação dos corpos.
O insólito da situação, a meu ver, se justifica pelo contraste de tratamento que qualquer episódio de natureza semelhante receberia no Brasil. Aqui, diferentemente da postura da governadora que facultou aos indivíduos o direito de morrer, a Defesa Civil impediria, forçosamente se preciso, a permanência de moradores em áreas de risco, interditando casas, removendo pessoas. Há, seguramente, um elemento virtuoso neste modo de compreender a ação do Estado, ocupado com o provimento e organização da vida coletiva. Elemento que, no limite, se manifesta em diferentes mecanismos, aparentemente desconexos, mas que guardam um sentido maior acerca da nossa formação, como o voto obrigatório, por exemplo.
No presente, o tão propalado projeto Ficha Limpa se inscreve nessa mesma discussão. A cidadania brasileira, novamente, clama por uma espécie de tutela sobre o seu comportamento, convidando personagens externos à sua soberania para decidir, com base numa linguagem sistêmica e opaca, quem pode ou não ser votado. Curiosamente o projeto foi uma iniciativa popular de lei que contou com um estrondoso apoio de praticamente todos os setores da opinião, recebendo poucas e mal fadadas críticas. Porém, o imbróglio jurídico que ora nos incomoda, recheado por um festival de liminares sobrepostas, nos convida a pensar se a reincidência da tutela que singulariza o Estado brasileiro é, como mencionei há pouco, igualmente virtuosa. Não enxergo no Ficha Limpa incremento de cultura cívica, nem qualquer capacidade pedagógica. Vejo, isso sim, a eclosão de mais um sintoma dessa cidadania carente de “proteção”. Torço para que o projeto funcione, pois do contrário quem irá nos proteger?
Publicado no Jornal Tribuna de Minas, Juiz de Fora-MG (25 de julho de 2010).
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