Em meio a um processo eleitoral sem muitas novidades, 2010 será inequivocamente marcado pela aprovação e conseqüente aplicação da chamada lei da “ficha limpa”. Fruto de uma iniciativa popular de lei, o projeto contou com o apoio de mais de um milhão e meio de brasileiros, além de ampla repercussão na mídia impressa e televisiva, programas humorísticos e setores da opinião pública. Nos meses que acompanharam sua tramitação, a lei que torna inelegíveis candidatos condenados por um colegiado de juízes, impedindo também a manutenção dos direitos políticos por meio de renúncia do mandato com o objetivo de evitar cassações – prática corriqueira entre a classe política –, recebeu poucas e insuficientes críticas, mobilizando grande parte da sociedade para sua aprovação.
Confesso que inicialmente olhei com desconfiança o projeto, declinando, inclusive, aderir ao abaixo assinado coordenado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e pela Articulação Brasileira contra a Corrupção e a Impunidade (ABRACCI) na internet. No meu entender, reforçar a necessidade de filtros ao exercício do sufrágio, além de sugerir certa interpretação problemática da democracia – mais “aristocrática”, mantendo nas mãos de “sábios” a capacidade de julgar quem pode ou não se candidatar –, não colaboraria para o incremento da cultura cívica, cara ao voto nas sociedades contemporâneas e sem a qual não teríamos como nos defender de práticas predatórias. Mais do que isso, reforçar a necessidade de um controle da participação eleitoral externo ao jogo político poderia, talvez, enunciar a já tão desgastada classe política como a única portadora de vícios, permanecendo o Judiciário como o mensageiro da virtude, plenamente infenso à corrupção. Aludir que a realidade em muito se distancia dessa percepção equivocada, cumprindo cada um ao seu modo serviços e desserviços à democracia, trajetória na qual a sociedade também detém sua parcela de culpa e responsabilidade, é desnecessário.
Em parte permaneço com a mesma opinião sem, contudo, negar as enormes conquistas que a “ficha limpa” vem promovendo no cenário político. Falo não só do modo como o projeto foi aprovado, mobilizando a sociedade civil na superação dos obstáculos ao recurso da Iniciativa Popular de Lei, garantida pela Carta de 1988, mas praticamente inviável sem o novíssimo uso da internet como instrumento de agregação. Caminho esse que reforça a requisitada cultura política que há pouco mencionei, contra a “estatolatria” da qual Gramsci nos alertava. Sem dúvida, o protagonismo da sociedade na condução desse dispositivo de reforma política, medida tão propalada pela opinião pública, quanto ignorada em importância e prioridade pela representação constituída, atesta a favor da existência de “aparelhos privados de hegemonia” na formação de vontades coletivas, dado saudável para a consolidação da democracia às vésperas de mais uma troca de poder – mesmo que entre mãos “semelhantes” –, em um país que tende historicamente a sofrer traumas em processos dessa natureza. Ao que tudo indica, porém, o futuro da institucionalidade democrática entre nós promete ser mais promissor do que no passado, e isso felizmente independe do candidato que vencerá as próximas eleições.
Soma-se a isso o modo como a lei vem sendo aplicada no país, tirando da disputa políticos notoriamente comprometidos com a Justiça, dos quais Joaquim Roriz (PSC-DF) e Paulo Maluf (PP-SP) são bons exemplos. Ainda que passíveis de revisão no Supremo Tribunal Federal, as decisões dos Tribunais Eleitorais dos estados e Distrito Federal têm recuperado não a confiança na política, desafio em aberto, mas a crença nas instituições, algo muito significativo no contexto presente. Roriz e Maluf são ícones do pior que a política nacional viveu nos últimos anos, portadores de extensas ”fichas sujas” e escudados em slogans perversos para a vida pública como o famigerado “rouba, mas faz”. Agora, em virtude da “ficha limpa”, os dois e alguns outros, quiçá muitos, estão sendo impedidos de registrar suas candidaturas, notícia alvissareira para os que lutaram pela aprovação da lei.
No entanto, mesmo os responsáveis pela elaboração do projeto têm vindo a público alertar para os seus limites, o que de modo algum sugere sua inutilidade. Ainda que a mídia tenha vendido, prática irresponsável para a qual li e ouvi poucas críticas, a “ficha limpa” como uma panacéia, inevitavelmente ela traria conquistas e cobraria, ao mesmo tempo, melhoras para as quais não pode em muito contribuir. Roriz, candidato ao governo do Distrito Federal, entrou ele mesmo no vácuo de poder aberto pela inviabilização do ex-governador José Roberto Arruda, envolvido em escândalos de corrupção em dezembro do ano passado. Arruda contava, e talvez ainda conte, com amplo apoio da população do DF. Igualmente Maluf, candidato à reeleição como Deputado Federal pelo estado de São Paulo, sagrar-se-ia vencedor se as eleições acontecessem hoje. Os exemplos são emblemáticos dos desafios que a “ficha limpa” é incapaz de resolver: políticos envolvidos em casos de improbidade administrativa, condenados pela Justiça Eleitoral em mais de uma ocasião, defenestrados pela impressa e opinião pública, contavam com a preferência do eleitorado. O que isso representa para a política no país?
Quando mencionei meus incômodos em relação ao projeto de lei pretendia reforçar a importância da política na organização da vida coletiva, valor visivelmente desafiado no cenário presente. Não por acaso, o declínio da confiança na classe política pautou boa parte dos argumentos que defenderam a aprovação da “ficha limpa” nos últimos meses, reverberado por programas de jornalismo escrachado, que não se atém à necessidade de elucidação de normas e procedimentos intrínsecos ao funcionamento das instituições democráticas. Nessas instâncias pouco se discutiu as conseqüências, perigos e vantagens da proposta, e mais se endossou o conteúdo moralista contra a política enquanto exercício necessário. Em vários momentos o Judiciário foi apresentado como a última esperança de um mundo corroído por práticas viciadas, sustentado pela incapacidade dos cidadãos de discernirem eles próprios quem deveria ou não exercer o poder. Aos que ensaiaram inutilmente questionamentos, sobrou a pecha de corruptos ou defensores da corrupção. Posso estar enganado, mas tal prática passa, por vários motivos, ao largo do que compreendo como fazer política.
Contudo, o projeto foi aprovado, salvo pequenas alterações, sancionado e entrou em vigor. Agora, quando o horário eleitoral gratuito irrompe no cotidiano do brasileiro médio, descrente da política e dos políticos, feliz com a possibilidade de “encarceramento” dos maus exemplos pelo Judiciário e pela polícia, personagens como o músico e humorista, ambas as qualidades contestáveis, Tiririca (PRN-SP), ou a dançarina Mulher Pêra (PTN-SP), cobram cuidados maiores. Ela, em seu sítio, apresenta mais atributos físicos do que propostas eleitorais. Ele, por sua vez, tem incomodado a todos com um ofensivo slogan eleitoral que traduz o que há de mais prejudicial à política: “vote em Tiririca, pior do que está não fica”.
Tiririca e Mulher Pêra denunciam os limites da “ficha limpa”, para os quais talvez os ensinamentos da sua aprovação, em seus erros e acertos, constituam uma boa pista do que nos falta. Ambos são elegíveis e muitos acreditam que serão, de fato, eleitos. Além, é claro, de capitalizar preciosos votos para suas legendas por trás de discursos rasos, despolitizados e despartidarizados. Sendo assim, o que nos falta? Creio que o bom exercício da política.
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