sexta-feira, 22 de outubro de 2010

O bem e o mal nas eleições presidenciais (Diálogos Políticos - Tribuna de Minas)

Pode parecer implicância, mas concordo com a grande maioria dos analistas que afirma ser esta eleição uma das piores vistas nos últimos anos. Seguramente, o processo em curso atesta muitas conquistas e não podemos ignorá-las. Falo da regularização das disputas, com periódicas trocas de poder sem maiores traumas; do incremento dos instrumentos de votação, como a urna eletrônica, com promessa de voto biométrico inclusive, comprova; do surgimento de uma imprensa livre e plural, para o que concorre o feliz aparecimento da internet como mecanismo de propagação de mensagens para além do gargalo que os tradicionais veículos de comunicação promoviam; da presença do Judiciário, em muitos casos virtuosa, mesmo que não possa ser compreendida como o último recurso no mundo da política; falo de uma democracia que não parece estar institucionalmente abalada – na contracorrente do que analistas irresponsáveis ou mal intencionados costumam sugerir –, ainda que um retorno ao que há de ruim no passado ecloda, por vezes, nos discursos eleitorais do presente.

É incômodo observar que depois de algumas eleições ainda constatemos pouca consolidação da cultura cívica e compreensão dos processos democráticos, como a pauta do segundo turno das eleições presidenciais vem demonstrando. Cobra-se dos candidatos à presidência que temas de natureza moral sejam assegurados, já nas campanhas, sob pena de perderem valiosos votos numa disputa que agora parece apertada, como se Dilma Rousseff (PT) ou José Serra (PSDB) fossem poderosos “príncipes” que quando no poder resolverão, a despeito das regras do jogo democrático, todos os problemas da sociedade brasileira segundo sua livre vontade e compromissos de campanha. Sinto em dizer ao eleitor desavisado que não é assim, para o bem, que a democracia brasileira funciona.

Todas as questões que por ventura venham a ocupar a agenda pública do próximo governo serão debatidas conforme prescreve a Constituição do país, obedecendo à lógica democrática de tramitação das discussões em benefício de um enriquecimento do debate. Ilude-se quem acredita ser o presidente um ente todo poderoso que decide na exceção, ignorando a existência dos demais Poderes da República – Câmara, Senado, Judiciário e seus Tribunais. Felizmente não é assim!

Porém, este cediço segundo turno promoveu um retorno ao que de ruim parecia ter sido superado. Se na primeira etapa a presença, para alguns “indesejável”, de Marina Silva (PV) desfocou o objetivo do governo de estreitar a disputa num plebiscito, agora, com saída de Marina, os contendores, seus juízes e artífices do marketing, limitam o eleitor a dizer sim ou não ante uma pauta pobre de criação. Não por acaso a repulsa do cidadão pouco detido com o cotidiano da política vem sendo atiçada em debates que giram em torno da moralidade e da corrupção, em óbvio detrimento da imaginação de um futuro melhor. Culpa de quem? Talvez não seja essa a pergunta apropriada.

Isso porque, se por um lado os candidatos acomodam nos seus discursos o que de ruim deveria ser neutralizado – despolitizando, por exemplo, temas de saúde pública como a legislação sobre o aborto em prol do endosso de opiniões opacas e irrefletidas –, por outro, setores da sociedade emparedam Dilma e Serra na quase “mendicância” por votos e apoios. E ao final, quem sai perdendo?

O problema de se pensar e agir assim num processo eleitoral é precisamente negligenciar o correto ou esperado sentido das eleições numa democracia: refletir sobre os reais problemas da sociedade brasileira de forma madura e não plebiscitária, como se o destino do país pudesse ser resumido a uma disputa entre o bem o mal. Creio que o Brasil é bem maior do que isso e a sociedade deve encontrar o seu papel na consolidação dos valores democráticos, sob pena de retrocessos.

Viçosa, 21 de outubro de 2010.

quinta-feira, 21 de outubro de 2010

Linha reta? (Coluna Cena Política - Rádio Catedral FM 102,3)


Olá, boa tarde! A agressão física sofrida pelo candidato José Serra (PSDB) ontem, no Rio de Janeiro, atesta o lado ruim da política que eclodiu neste segundo turno. Escândalos de corrupção e assuntos de natureza moral têm sido mobilizados num amplo processo de despolitização do debate eleitoral, que em nada reforça a construção dos valores democráticos e republicanos caros ao desenvolvimento do país e eliminação das desigualdades. Não por acaso os debates entre Dilma e Serra permanecem, até o momento, aprisionados em temas menores, ofensas e acusações que afastam o eleitor da arena pública. E de quem é a culpa? Não condeno o eleitorado brasileiro pelo desânimo acerca do exercício da política, sentimento reforçado no segundo turno desta eleição pouco imaginativa sobre o futuro do país. A classe política já tão desacreditada não encontrou, no presente, chance de respirar ares mais apropriados no caminho da retomada do seu prestígio. A pauta que no primeiro turno girou em torno de um esquisito plebiscito de três – com a “indesejável”, para alguns, presença de Marina Silva (PV) –, estreita agora os rumos do país num duelo entre quem é mais corrupto. Não é preciso dizer que os reais problemas da sociedade brasileira, sim eles existem, passam ao largo desse embate. Acesso à Universidade, saúde pública, estradas, esgoto, discriminação racial e de gênero são os problemas com os quais nos havemos dia-a-dia. Seguramente devemos combater a corrupção. Mas penso, apenas, em que momento mais do que isso foi colocado na balança como o diferencial que desempataria um embate tão pobre de imaginação. Até o presente não foi, pelo menos da parte dos concorrentes. Isso porque, positivamente me surpreendo com a capacidade que setores da sociedade civil têm de se mobilizar na contracorrente dos debates eleitorais. Espero que por essa via os valores democráticos se renovem, mostrando ao eleitorado brasileiro seu papel para além da tutela estatal. Mostrando, enfim, seu lugar na República em benefício de um futuro melhor. Até que não traçamos uma linha reta. Ainda assim, não devemos perder a esperança de que depois de tantas curvas, retrocessos e avanços, o Brasil pode melhorar. Boa tarde a todos e até o Cena Política da semana que vem!

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A dádiva e as forças próprias - Luiz Werneck Vianna (Valor Econômico)


Luiz Werneck Vianna (IESP-Uerj e CEDES)

Sucessões presidenciais, mesmo quando anódinas, como esta em que estamos envolvidos, têm o condão de mudar o curso dos acontecimentos. Sucessões brasileiras envolvem um colégio eleitoral de milhões de pessoas, expostas por um largo período de tempo à propaganda eleitoral nos meios de comunicação de massa, com seus candidatos obrigados a decifrar, em meio a uma profunda heterogeneidade social e regional, quais são as motivações para o voto de um eleitorado de comportamento ainda muito pouco conhecido.

Assim, afora a presença do marketing político e dos institutos de pesquisa especializados no estudo do voto que atuam no sentido de produzir alguma inteligibilidade e previsibilidade sobre o processo eleitoral, as eleições, especialmente em uma sociedade inarticulada como a nossa, contam, ou deveriam contar, com a leitura privilegiada dos candidatos sobre o cenário e as circunstâncias em que estão envolvidos.

Algumas sucessões do nosso passado recente não podem ser explicadas se não se consideram os atributos demiúrgicos de candidatos vencedores, como Jânio Quadros, Fernando Collor e Lula, que, em meio a inumeráveis caminhos possíveis, descobriram os que poderiam levá-los a atingir as expectativas dos eleitores das eleições em que disputaram. No caso deles, pode-se sustentar que o carisma tenha sido um elemento determinante em suas vitórias, na medida em que importou em leituras inovadoras da situação do país e que significavam rupturas com rotinas e com as formas usuais de interpretá-la.

Essas eleições de 2010 nascem sob o signo oposto ao da inovação. Tanto para Dilma como para Serra, os dois contendores que aí estão no segundo turno, a chave de leitura com se credenciam à disputa eleitoral é a da continuidade, diagnóstico que lhes chega dos especialistas e que não reclamava deles uma qualidade especial, salvo a de se apresentarem como administradores preparados a fim de dar sequência a um script que vinha "dando certo". A partir dessa opção comum, ambas as candidaturas abdicam da invenção, da criação propriamente política, e partem para o confronto eleitoral em um campo dominado pela linguagem da administração.

Sob esse registro sem alma, o horário político franqueado pela legislação vai servir de vitrine para as obras realizadas e de lugar para controvérsias estatísticas sobre serviços anteriormente prestados, cada candidato brandindo uma cornucópia gigante de onde se extraem promessas de habitação, saúde, segurança, saneamento básico, aumentos salariais, vida farta e barata como dádiva do futuro governante.

Porém, como se diz, promessas são dívidas, e, dessa perspectiva, a questão social brasileira, nesta disputa eleitoral, adquiriu - e essa é, sem dúvida, uma vitória de Lula - uma envergadura inédita na política brasileira. De passagem, notar que o tema das privatizações, antes tão influente, somente, agora, no segundo turno, faz sua aparição, embora, pelo que se vê, sem acender a imaginação dos eleitores e a dos próprios candidatos.

Abrir essa cornucópia, sabem-no as pedras das ruas, vai depender da economia, e, tirante as expectativas de tesouros escondidos no pré-sal, o público eleitor não está suficientemente informado de como tantas promessas vão se converter em bens tangíveis, uma vez que os candidatos se têm mostrado reticentes sobre quais são os seus programas de governo.

De qualquer modo, o mandato que vier a nascer dessa campanha presidencial estará incontornavelmente comprometido com a realização do que foi o programa social das duas candidaturas, temática dominante em todo o seu transcurso, ambas alinhadas a uma social-democracia à brasileira de corte paternal, essa nova espécie de jabuticaba que medra entre nós.

Frustrações nesse terreno, com Lula tão perto em São Bernardo, não seriam aconselháveis. Contudo, dado que os recursos são escassos, nada difícil prever que, com o novo governante, a hora das reformas chegará para valer, e, com ela, a queda de braços a definir quem perde e quem ganha, havendo dois times bem definidos para uma aguerrida disputa em cada ponto da sua agenda.

Dessa modelagem resultou, como seria de se esperar, uma campanha presidencial em que os movimentos sociais e seus temas tenham sido os grandes ausentes, dos sindicatos às organizações feministas. Não é, pois, por acaso, que, em sua reta final, diante de um cenário frio e despolitizado, resultado para o qual os candidatos - instituídos em ideólogos da dádiva como recurso de mobilização eleitoral - estão longe de serem inocentes, essas eleições culminem, lastimavelmente, com o reconhecimento, inclusive em documentos oficiais de candidatos, de que caberia um lugar na vida republicana brasileira para as formas mais primitivas do fundamentalismo religioso.

Para esse desastrado resultado, não conspiraram, em suas convicções pessoais, inequivocamente modernas e progressistas, nem Serra e nem Dilma, mas sim essa dita política do social reinante entre nós, produzida de cima para baixo, e que subestima a capacidade da sociedade de se auto-organizar sem a indução benevolente de um governo compadecido. Daí que outro efeito, certamente inesperado, do caráter benfazejo dessas eleições é o de ter demonstrado aos movimentos sociais e às suas organizações que a realização de suas aspirações depende das forças próprias de que falava Rousseau, e não do Estado e de suas agências, que, por natureza, são prisioneiros da lógica da conservação e expansão do poder político. Por ora, o movimento feminista é a melhor testemunha disso.

Publicado no jornal Valor Econômico (18 de outubro de 2010).

quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Democracia plebiscitária? (Coluna Cena Política - Rádio Catedral FM 102,3)

Olá, boa tarde! Pode parecer implicância, mas concordo com a grande maioria dos analistas que afirma ser esta eleição uma das piores vistas nos últimos anos. Seguramente, o processo em curso atesta muitas conquistas e não podemos ignorá-las. Falo da regularização das disputas, com trocas periódicas de poder sem maiores traumas; do incremento dos instrumentos de votação, como a urna eletrônica, com promessa de voto biométrico inclusive, comprova; do surgimento de uma imprensa livre e plural, para o que concorre o feliz aparecimento da internet como mecanismo de propagação de mensagens para além do estreitamento que os tradicionais veículos de comunicação promoviam; da presença do Judiciário, em muitos casos virtuosa, mesmo que não possa ser compreendida como o último recurso no mundo da política; falo de uma democracia que não parece estar institucionalmente abalada, ainda que um retorno ao que há de ruim no passado ecloda, por vezes, nos discursos eleitorais do presente. É incômodo observar que depois de algumas eleições ainda constatemos pouca consolidação da cultura cívica e compreensão dos processos democráticos, como a pauta do segundo turno das eleições presidenciais vem demonstrando. Cobra-se dos candidatos à presidência que temas de natureza moral sejam assegurados, já nas campanhas, sob pena de perderem valiosos votos numa disputa que agora parece apertada, como se Dilma ou Serra fossem poderosos “príncipes” que quando no poder resolverão, a despeito das regras do jogo democrático, todos os problemas da sociedade brasileira segundo sua vontade e compromissos de campanha. Sinto em dizer ao eleitor desavisado que não é assim, para o bem, que a democracia brasileira funciona. Todas as questões que por ventura venham a ocupar a agenda pública do próximo governo serão debatidas segundo os trâmites constitucionais, obedecendo à lógica democrática de tramitação das discussões em benefício de um enriquecimento do debate. Ilude-se o eleitor que acredita ser o presidente um ente todo poderoso que decide a despeito da existência dos demais Poderes da República – Câmara, Senado, Judiciário e seus Tribunais. Felizmente não é assim! E o problema de se pensar e agir assim num processo eleitoral é precisamente perder o correto ou esperado sentido das eleições numa democracia: refletir sobre os reais problemas da sociedade brasileira de forma madura e não plebiscitária, como se o destino do país pudesse ser resumido a uma disputa entre o bem o mal. Creio que o Brasil é bem maior do que isso! Boa tarde a todos e até o Cena Política da semana que vem!
A coluna Cena Política vai ao ar todas as quintas (por volta das 14:30h), na Rádio Catedral FM 102,3.

quinta-feira, 7 de outubro de 2010

"Dois pesos..." Maria Rita Kehl (O Estado de São Paulo)

Este jornal teve uma atitude que considero digna: explicitou aos leitores que apóia o candidato Serra na presente eleição. Fica assim mais honesta a discussão que se faz em suas páginas. O debate eleitoral que nos conduzirá às urnas amanhã está acirrado. Eleitores se declaram exaustos e desiludidos com o vale-tudo que marcou a disputa pela presidência da república. As campanhas, transformadas em espetáculo televisivo, não convencem mais ninguém. Apesar disso, alguma coisa importante está em jogo este ano. Parece até que temos luta de classes no Brasil: esta que muitos acreditam ter sido soterrada pelos últimos tijolos do Muro de Berlim. Na TV a briga é maquiada, mas na internet o jogo é duro.

Se o povão das chamadas classes D e E – os que vivem nos grotões perdidos do interior do Brasil – tivesse acesso à internet, talvez se revoltasse contra as inúmeras correntes de mensagens que desqualificam seus votos. O argumento já é familiar ao leitor: os votos dos pobres a favor da continuidade das políticas sociais implantadas durante oito anos de governo Lula não valem tanto quanto os nossos. Não são expressão consciente de vontade política Teriam sido comprados ao preço do que parte da oposição chama de bolsa esmola.

Uma dessas correntes chegou à minha caixa postal vinda de diversos destinatários. Reproduzia a denúncia feita por “uma prima” do autor, residente em Fortaleza. A denunciante, indignada com a indolência dos trabalhadores não qualificados de sua cidade, queixava-se de que ninguém mais queria ocupar a vaga de porteiro do prédio onde mora. Os candidatos naturais ao emprego preferiam viver na moleza, com o dinheiro da bolsa-família. Ora, essa. A que ponto chegamos. Não se fazem mais pés-de-chinelo como antigamente. Onde foram parar os verdadeiros humildes de quem o patronato cordial tanto gostava, capazes de trabalhar bem mais que as oito horas regulamentares por uma miséria? Sim, porque é curioso que ninguém tenha questionado o valor do salário oferecido pelo condomínio da capital cearense. A troca do emprego pela bolsa-família só seria vantajosa para os supostos espertalhões, preguiçosos e aproveitadores se o salário oferecido ,fosse inconstitucional: mais baixo do que metade do mínimo. 200 reais é o valor máximo a que chega a soma de todos os benefícios do governo para quem tem mais de três filhos, com a condição de mantê-los na escola.

Outra denúncia indignada que corre pela internet é a de que na cidade do interior do Piauí onde vivem os parentes da empregada de algum paulistano, todos os moradores vivem do dinheiro dos programas do governo. Se for verdade, é estarrecedor imaginar do que viviam antes disso Passava-se fome, na certa, como no assustador “Garapa”, filme de José Padilha. Passava-se fome todos os dias Continuam pobres as famílias abaixo da classe C que hoje recebem a bolsa, somada ao dinheirinho de alguma aposentadoria. Só que agora comem. Alguns já conseguem até produzir e vender para outros que também começaram a comprar o que comer. O economista Paul Singer informa que, nas cidades pequenas, essa pouca entrada de dinheiro tem um efeito surpreendente sobre a economia local. A bolsa família, acreditem se quiserem, proporciona as condições de consumo capazes de gerar empregos. O voto da turma da “esmolinha” é político e revela consciência de classe recém adquirida.

O Brasil mudou nesse ponto. Mas ao contrário do que pensam os indignados da internet, mudou para melhor. Se até pouco tempo alguns empregadores costumavam contratar, por menos de um salário mínimo, pessoas sem alternativa de trabalho e sem consciência de seus direitos, hoje não é tão fácil encontrar quem aceite trabalhar nessas condições. Vale mais tentar a vida a partir da bolsa família, que apesar de modesta, reduziu de 12 para 4,8% a faixa de população em estado de pobreza extrema. Será que o leitor paulistano tem idéia do quanto é preciso ser pobre, para sair dessa faixa por uma diferença de 200 reais? Quando o Estado começa a garantir alguns direitos mínimos à população, esta se politiza e passa a exigir que eles sejam cumpridos. Um amigo chamou este efeito de “acumulação primitiva de democracia”.

Mas parece que o voto dessa gente ainda desperta o argumento de que os brasileiros, como na inesquecível observação de Pelé, não estão preparados para votar. Nem todos, é claro. Depois do segundo turno de 2006, o sociólogo Hélio Jaguaribe escreveu que os 60% de brasileiros que votaram em Lula teriam levado em conta apenas em seus próprios interesses, enquanto os outros 40% de supostos eleitores instruídos pensavam nos interesses do país. Jaguaribe só não explicou como foi possível que o Brasil, dirigido pela elite instruída que se preocupava com os interesses de todos, tenha chegado ao terceiro milênio contando com 60% de sua população tão inculta a ponto de seu voto ser desqualificado como pouco republicano.

Agora que os mais pobres conseguiram levantar a cabeça acima da linha da mendicância e da dependência das relações de favor que sempre caracterizaram as políticas locais pelo interior do país, dizem que votar em causa própria não vale. Quando, pela primeira vez, os sem-cidadania conquistaram direitos mínimos que desejam preservar pela via democrática , parte dos cidadãos que se consideram classe A vem a público desqualificar a seriedade de seus votos.

Texto publicado no jornal Estado de São Paulo (02 de outubro de 2010). Os artigos e ensaios de Maria Rita Kehl podem ser lidos no sítio da psicanalista.

Segue abaixo a entrevista da autora publicada hoje no Terra Magazine.

Maria Rita Kehl: "Fui demitida por um 'delito' de opinião"

Por Bob Fernandes.

A psicanalista Maria Rita Kehl foi demitida pelo Jornal O Estado de S. Paulo depois de ter escrito, no último sábado (02/10), artigo sobre a "desqualificação" dos votos dos pobres. O texto, intitulado "Dois pesos...", gerou grande repercussão na internet e mídias sociais nos últimos dias.

Nesta quinta-feira (07/10), ela falou a Terra Magazine sobre as consequências do seu artigo:


- Fui demitida pelo jornal o Estado de S. Paulo pelo que consideraram um "delito" de opinião (...) Como é que um jornal que anuncia estar sob censura, pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?


Leia abaixo a entrevista.


Terra Magazine - Maria Rita, você escreveu um artigo no jornal O Estado de S.Paulo que levou a uma grande polêmica, em especial na internet, nas mídias sociais nos últimos dias. Em resumo, sobre a desqualificação dos votos dos pobres. Ao que se diz, o artigo teria provocado conseqüências para você...

Maria Rita Kehl - E provocou, sim...


Quais?

Fui demitida pelo jornal O Estado de S.Paulo pelo que consideraram um "delito" de opinião.


Quando?

Fui comunicada ontem (quarta-feira, 06/10).


E por qual motivo?

O argumento é que eles estavam examinando o comportamento, as reações ao que escrevi e escrevia, e que, por causa da repercussão (na internet), a situação se tornou intolerável, insustentável, não me lembro bem que expressão usaram.


Você chegou a argumentar algo?

Eu disse que a repercussão mostrava, revelava que, se tinha quem não gostasse do que escrevo, tinha também quem goste. Se tem leitores que são desfavoráveis, tem leitores que são a favor, o que é bom, saudável...


Que sentimento fica para você?

É tudo tão absurdo... A imprensa que reclama, que alega ter o governo intenções de censura, de autoritarismo...


Você concorda com essa tese?

Não, acho que o presidente Lula e seus ministros cometem um erro estratégico quando criticam, quando se queixam da imprensa, da mídia, um erro porque isso, nesse ambiente eleitoral pode soar autoritário, mas eu não conheço nenhuma medida, nenhuma ação concreta, nunca ouvi falar de nenhuma ação concreta para cercear a imprensa. Não me refiro a debates, frases soltas, falo em ação concreta, concretizada. Não conheço nenhuma, e, por outro lado...


...Por outro lado...?

Por outro lado a imprensa que tem seus interesses econômicos, partidários, demite alguém, demite a mim, pelo que considera um "delito" de opinião. Acho absurdo, não concordo, que o dono do Maranhão (senador José Sarney) consiga impor a medida que impôs ao jornal O Estado de S.Paulo, mas como pode esse mesmo jornal demitir alguém apenas porque expôs uma opinião? Como é que um jornal que está, que anuncia estar sob censura, pode demitir alguém só porque a opinião da pessoa é diferente da sua?


Você imagina que isso tenha algo a ver com as eleições?

Acho que sim. Isso se agravou com a eleição, pois, pelo que eles me alegaram agora, já havia descontentamento com minhas análises, minhas opiniões políticas.

Um plebiscito de três... (Coluna Cena Política - Rádio Catedral FM 102,3)


Olá, boa tarde! Como não poderia deixar de ser a política, mais uma vez, nos surpreendeu. Não só a nós, analistas, mas especialmente a eles, os políticos. Falo do sucesso acima do esperado da candidatura de Marina Silva (PV), de alguma forma subestimado pelas pesquisas, porém ratificado pelas urnas. Marina obteve mais de 19 milhões de votos, alcançando quase 20% do eleitorado e provocando o adiamento da decisão, que todos sabemos era aguardado por muitos no último dia 03. O que podemos pensar disso? Não creio que o prolongamento da disputa ateste a eficácia da propaganda eleitoral de José Serra (PSDB). Sua candidatura continua incorrendo nos mesmos erros ao não demarcar distinção em relação ao governo petista. Talvez o sucesso de Marina e o adiamento da decisão para o próximo dia 31 seja melhor explicado por outro erro, agora de Dilma Rousseff (PT). A tentativa da candidatura governista de estreitar a escolha do eleitor no gargalo do plebiscito, opondo o sucesso do governo Lula ao suposto fracasso da era FHC, encontrou, como tudo na história, elementos não previstos pela intenção original. Falo exatamente de Marina Silva, uma terceira via que saiu de coadjuvante ao status de ator em disputa e que pode, agora, emparedar os concorrentes aprisionando-os em suas propostas. É isso que o seu partido, o PV, já anuncia em coletivas empurrando a decisão sobre quem irá apoiar para uma plenária futura. Essa é, aliás, uma estratégia antiga na política: a incerteza daqueles que carecem de apoio, no presente todos, os conduz à fragilidade desejada. O PV reforça seu desprendimento por cargos, fisiologismo conhecido em contextos similares, erguendo seu programa de governo como moeda de troca. Dilma e Serra certamente aceitarão o preço, restando saber quem pagará mais. Ainda assim tenho uma intuição sobre a postura de Marina que talvez tenha implicações no seu apoio: com o desempenho obtido ela se cacifou como personagem em disputa. Sua votação cresceu na blindagem promovida em volta de Dilma, escondendo a candidata ao longo do primeiro turno na crença de que o prestígio de Lula encerraria a contenda; na impotência da candidatura de oposição, apresentando um “Zé Serra” incoerente com o perfil tucano; e, o mais importante, no diferente. Em momento algum Marina se apresentou como “igual”, erro esse cometido por Serra. Isso pode fazer com que seu apoio seja realmente pensando em outras bases, ou seja, decidido tendo como norte a estruturação de Marina e do PV como opções no futuro. Resta sabermos se a postura de distinção apresentada durante a campanha, responsável pela capitalização política que constatamos na apuração, será sustentada agora que Marina é comprovadamente “importante”. Boa tarde a todos e até o Cena Política da semana que vem!
A coluna Cena Política vai ao ar todas as quintas (por volta das 14:30h), na Rádio Catedral FM 102,3.

terça-feira, 5 de outubro de 2010

Protesto burro (Opinião - Tribuna de Minas)

Há alguns anos a cédula eleitoral era o mecanismo com o qual os cidadãos brasileiros expressavam, de tempos em tempos, suas opiniões sobre o estado das coisas no país. Por vezes, o protesto contra a classe política e as instituições democráticas se dava no voto em personagens fictícios ou animais de zoológico em vista da possibilidade subjetiva de escrever na cédula o que o eleitor bem quisesse. Hoje, na era da urna eletrônica, parece que as atitudes de outrora encontraram uma nova forma de dar vazão a insatisfação dos brasileiros. Ante a impossibilidade de escapar do “escol” de opções determinado pela urna, e mesmo da pouca significância dos votos nulos e brancos – ambos inválidos e fora da conta final –, uma fatia considerável do eleitorado parece ter adotado o escracho como alternativa viável. Não por acaso, o palhaço Tiririca obteve mais de um milhão de trezentos mil votos em São Paulo, configurando como o candidato a deputado federal mais votado no país. O curioso é que esse “voto de protesto”, motivado pela insatisfação com políticos defenestrados pela opinião pública, torna vencedores, por meio da proporcionalidade e coligações, exatamente aqueles que se pretendia punir. Tiririca, ancorado num slogan perverso para a vida democrática – “pior do que está, não fica” – alcançou sozinho mais de quatro vezes o quociente eleitoral elegendo, com ele, personagens não tão “populares”. Ainda assim, o sistema sobreviverá. No Congresso, o palhaço e seus “caronas” serão diluídos numa lógica dominada por lideranças de bancada e disciplina partidária, integrando o “baixo clero”, conforme a vulgata parlamentar denomina. A bancada eleita nas costas de Enéas Carneiro, exemplo similar de sucesso eleitoral por meio da pilhéria, atesta o destino desses futuros parlamentares: em quatro anos, nenhum projeto aprovado, nenhum barulho feito. Não questiono a possibilidade democrática de personagens como Tiririca participarem do pleito. Penso, apenas, nessa forma de protesto burro que acaba por beneficiar exatamente aqueles que se pretendia condenar. O caminho já foi descoberto e podem estar certos, será utilizado novamente.

Viçosa, 04 de outubro de 2010.

Publicado hoje (05 de outubro de 2010), na seção Opinião do jornal Tribuna de Minas, Juiz de Fora-MG.

segunda-feira, 4 de outubro de 2010

A "ficha limpa", suas conquistas, seus limites... (Boletim CEDES)

Em meio a um processo eleitoral sem muitas novidades, 2010 será inequivocamente marcado pela aprovação e conseqüente aplicação da chamada lei da “ficha limpa”. Fruto de uma iniciativa popular de lei, o projeto contou com o apoio de mais de um milhão e meio de brasileiros, além de ampla repercussão na mídia impressa e televisiva, programas humorísticos e setores da opinião pública. Nos meses que acompanharam sua tramitação, a lei que torna inelegíveis candidatos condenados por um colegiado de juízes, impedindo também a manutenção dos direitos políticos por meio de renúncia do mandato com o objetivo de evitar cassações – prática corriqueira entre a classe política –, recebeu poucas e insuficientes críticas, mobilizando grande parte da sociedade para sua aprovação.

Confesso que inicialmente olhei com desconfiança o projeto, declinando, inclusive, aderir ao abaixo assinado coordenado pelo Movimento de Combate à Corrupção Eleitoral (MCCE) e pela Articulação Brasileira contra a Corrupção e a Impunidade (ABRACCI) na internet. No meu entender, reforçar a necessidade de filtros ao exercício do sufrágio, além de sugerir certa interpretação problemática da democracia – mais “aristocrática”, mantendo nas mãos de “sábios” a capacidade de julgar quem pode ou não se candidatar –, não colaboraria para o incremento da cultura cívica, cara ao voto nas sociedades contemporâneas e sem a qual não teríamos como nos defender de práticas predatórias. Mais do que isso, reforçar a necessidade de um controle da participação eleitoral externo ao jogo político poderia, talvez, enunciar a já tão desgastada classe política como a única portadora de vícios, permanecendo o Judiciário como o mensageiro da virtude, plenamente infenso à corrupção. Aludir que a realidade em muito se distancia dessa percepção equivocada, cumprindo cada um ao seu modo serviços e desserviços à democracia, trajetória na qual a sociedade também detém sua parcela de culpa e responsabilidade, é desnecessário.

Em parte permaneço com a mesma opinião sem, contudo, negar as enormes conquistas que a “ficha limpa” vem promovendo no cenário político. Falo não só do modo como o projeto foi aprovado, mobilizando a sociedade civil na superação dos obstáculos ao recurso da Iniciativa Popular de Lei, garantida pela Carta de 1988, mas praticamente inviável sem o novíssimo uso da internet como instrumento de agregação. Caminho esse que reforça a requisitada cultura política que há pouco mencionei, contra a “estatolatria” da qual Gramsci nos alertava. Sem dúvida, o protagonismo da sociedade na condução desse dispositivo de reforma política, medida tão propalada pela opinião pública, quanto ignorada em importância e prioridade pela representação constituída, atesta a favor da existência de “aparelhos privados de hegemonia” na formação de vontades coletivas, dado saudável para a consolidação da democracia às vésperas de mais uma troca de poder – mesmo que entre mãos “semelhantes” –, em um país que tende historicamente a sofrer traumas em processos dessa natureza. Ao que tudo indica, porém, o futuro da institucionalidade democrática entre nós promete ser mais promissor do que no passado, e isso felizmente independe do candidato que vencerá as próximas eleições.

Soma-se a isso o modo como a lei vem sendo aplicada no país, tirando da disputa políticos notoriamente comprometidos com a Justiça, dos quais Joaquim Roriz (PSC-DF) e Paulo Maluf (PP-SP) são bons exemplos. Ainda que passíveis de revisão no Supremo Tribunal Federal, as decisões dos Tribunais Eleitorais dos estados e Distrito Federal têm recuperado não a confiança na política, desafio em aberto, mas a crença nas instituições, algo muito significativo no contexto presente. Roriz e Maluf são ícones do pior que a política nacional viveu nos últimos anos, portadores de extensas ”fichas sujas” e escudados em slogans perversos para a vida pública como o famigerado “rouba, mas faz”. Agora, em virtude da “ficha limpa”, os dois e alguns outros, quiçá muitos, estão sendo impedidos de registrar suas candidaturas, notícia alvissareira para os que lutaram pela aprovação da lei.

No entanto, mesmo os responsáveis pela elaboração do projeto têm vindo a público alertar para os seus limites, o que de modo algum sugere sua inutilidade. Ainda que a mídia tenha vendido, prática irresponsável para a qual li e ouvi poucas críticas, a “ficha limpa” como uma panacéia, inevitavelmente ela traria conquistas e cobraria, ao mesmo tempo, melhoras para as quais não pode em muito contribuir. Roriz, candidato ao governo do Distrito Federal, entrou ele mesmo no vácuo de poder aberto pela inviabilização do ex-governador José Roberto Arruda, envolvido em escândalos de corrupção em dezembro do ano passado. Arruda contava, e talvez ainda conte, com amplo apoio da população do DF. Igualmente Maluf, candidato à reeleição como Deputado Federal pelo estado de São Paulo, sagrar-se-ia vencedor se as eleições acontecessem hoje. Os exemplos são emblemáticos dos desafios que a “ficha limpa” é incapaz de resolver: políticos envolvidos em casos de improbidade administrativa, condenados pela Justiça Eleitoral em mais de uma ocasião, defenestrados pela impressa e opinião pública, contavam com a preferência do eleitorado. O que isso representa para a política no país?

Quando mencionei meus incômodos em relação ao projeto de lei pretendia reforçar a importância da política na organização da vida coletiva, valor visivelmente desafiado no cenário presente. Não por acaso, o declínio da confiança na classe política pautou boa parte dos argumentos que defenderam a aprovação da “ficha limpa” nos últimos meses, reverberado por programas de jornalismo escrachado, que não se atém à necessidade de elucidação de normas e procedimentos intrínsecos ao funcionamento das instituições democráticas. Nessas instâncias pouco se discutiu as conseqüências, perigos e vantagens da proposta, e mais se endossou o conteúdo moralista contra a política enquanto exercício necessário. Em vários momentos o Judiciário foi apresentado como a última esperança de um mundo corroído por práticas viciadas, sustentado pela incapacidade dos cidadãos de discernirem eles próprios quem deveria ou não exercer o poder. Aos que ensaiaram inutilmente questionamentos, sobrou a pecha de corruptos ou defensores da corrupção. Posso estar enganado, mas tal prática passa, por vários motivos, ao largo do que compreendo como fazer política.

Contudo, o projeto foi aprovado, salvo pequenas alterações, sancionado e entrou em vigor. Agora, quando o horário eleitoral gratuito irrompe no cotidiano do brasileiro médio, descrente da política e dos políticos, feliz com a possibilidade de “encarceramento” dos maus exemplos pelo Judiciário e pela polícia, personagens como o músico e humorista, ambas as qualidades contestáveis, Tiririca (PRN-SP), ou a dançarina Mulher Pêra (PTN-SP), cobram cuidados maiores. Ela, em seu sítio, apresenta mais atributos físicos do que propostas eleitorais. Ele, por sua vez, tem incomodado a todos com um ofensivo slogan eleitoral que traduz o que há de mais prejudicial à política: “vote em Tiririca, pior do que está não fica”.

Tiririca e Mulher Pêra denunciam os limites da “ficha limpa”, para os quais talvez os ensinamentos da sua aprovação, em seus erros e acertos, constituam uma boa pista do que nos falta. Ambos são elegíveis e muitos acreditam que serão, de fato, eleitos. Além, é claro, de capitalizar preciosos votos para suas legendas por trás de discursos rasos, despolitizados e despartidarizados. Sendo assim, o que nos falta? Creio que o bom exercício da política.

O papel civilizador que o Estado exerceu historicamente na sociedade brasileira ajudou a construir práticas que culminaram na maior consolidação da democracia entre nós. A defesa de direitos, que no caso da “ficha limpa” em particular repousa na garantia da idoneidade dos candidatos que permanecia confusa num cenário de escassa informação, encontra atualmente instâncias capazes de defendê-los por meio de instrumentos criados a partir do mundo do direito. Mesmo assim, a política ainda é a estrutura capaz de vertebrar a sociedade em sua complexidade e contradições. No período eleitoral que se aproxima precisamos medir as conquistas sem, com isso, desconsiderar seus limites. A “ficha limpa” vem cumprindo o seu papel. Falta a cidadania decantar os valores que a democracia e a República necessitam. Até porque, na contracorrente da opinião do candidato Tiririca, acredito que o mundo sempre pode piorar em vista das nossas escolhas, ou melhorar...

O texto foi originalmente publicado no Boletim do Centro de Estudos Direito e Sociedade (CEDES/IESP), Agosto/Setembro de 2010. Para ler o Boletim CEDES, clique aqui.