sexta-feira, 3 de setembro de 2010

Pô, Jabor, vamos ouvir uma musiquinha! (O Globo - Segundo Caderno)


Um arrepio de amor pelo Brasil

Arnaldo Bloch

Prezado xará Jabor, estava lendo dias atrás sua coluna sobre os arrepios que vem sentindo diante do cenário eleitoral (com Serra ou com Dilma, uma grande cilada nos aguardaria!), e dos perigos de nosso atual momento, no qual estaríamos cercados por forças que, de um modo ou de outro, nos levarão às trevas da mais inexpugnável opressão. Jabor, eu aqui declaro: ao contrário de você e de tanta gente à minha volta, ainda não escolhi meu candidato. Que nem disse o Jards Macalé: “Meu voto é tão secreto que eu mesmo desconheço.” Além disso, Jabor, não sou analista situacional nem tenho a sua bagagem em vivência de processos políticos traumáticos. Nasci em 1965, meus pais não eram ativistas, minha família não rezava por cartilhas muito libertárias. Por motivos de superproteção materna maior, não frequentei os movimentos da esquerda sionista (pô, mamãe!). Fiquei mesmo ali, na santa ignorância sobre o arbítrio e a violência do regime, até a sua abertura.

Entre um Dostoievski, um Kafka, um Hess e um Ionesco, abria os jornais locais e relaxava com os quadrinhos e os esportes. Achava Médici um velhinho simpático (o único defeito era ser Flamengo) e me emocionava com as paradas militares. Até hoje, quando ouço ruídos de helicóptero em domingo de sol, volta-me aquela sensação de conforto alienado. E fico com um baita sentimento de culpa.

Em compensação, minha primeira grande emoção cívica esclarecida (até onde era possível ser esclarecido) foi de lavar a alma: a corrente das Diretas Já, a vigília, o comício do milhão na Candelária. O pano da censura baixou e eu bebia, no teatro, no cinema, nas artes, nos jornais, essa água nova do saber. Na faculdade, liberto do cerco familiar, integrei uma turma que já via como anacrônicas as “questões de ordem” dos veteranos engajados e, ao mesmo tempo, negava as ondas de caretice da direita tecnocrática que se insinuava na arena do movimento estudantil.

Sabe, Jabor, gosto muito da sua verve e aprecio seu alarmismo quando ele traz junto uma autoironia redentora, uma confissão da própria paranoia, um reconhecimento do pathos do seu discurso, aquela coisa do bode preto, do seu bode preto, estar sempre à espreita. Mas ao tomar o trem de seus arrepios recentes, confesso que senti também um arrepio, provocado pelo seu desencanto e pela sua desesperança no povo brasileiro. Bati na folha do jornal e disse: não, não e não! Não vou crer que os tais 80% de Ibope a que você se refere sejam compostos de uma substância humana miseravelmente iludida, incapaz de contemplar o andar da carruagem, desprovida de qualquer juízo. O brasileiro tem lá suas carências de educação e de proteína, mas não consigo, não consigo mesmo, ver esse povo, passadas duas décadas e meia do início da redemocratização, caminhar no escuro, ou na direção do abismo.

Vejo, sim, um país que, por obra do eleitor, levou Collor, FH e depois Lula ao poder e que, através de suas escolhas, certas ou erradas, deu um belo passo no sentido da consolidação do tal processo democrático. Olha Jabor, não vejo encanto em nenhum dos candidatos. Não é, aqui, uma questão de preferência, mas de referência. Talvez por ser um filho da ignorância que de repente acordou na grande virada; ou talvez por ser menos marcado por convulsões radicais eu tenha esta percepção positiva. Por outro lado, há fatos a apoiá-la: independentemente dos desmandos desse o ou daquele, dos equívocos, das apropriações de ideias, há uma verdade indiscutível: não veio a ruptura institucional que tantos temeram.

O Brasil foi, e é, maior que Lula, maior que FH, que Dilma, que Serra, que os Arnaldos, os jabores e os blochs. O Brasil é esse bêbado equilibrista que não caiu. Que estabilizou a moeda e a manteve estável. Que não fechou o Congresso. País onde as instituições e os meios de difusão de informação têm lá suas turras, mas a imprensa está aí, dialogando com a sociedade e com as esferas políticas em meio à transformação revolucionária, para o bem e para os males, que ocorre na tecnologia. Sei lá, Jabor. Essa sua ideia do perigo iminente — ou será imanente? — me lembrou um pouco a Regina Duarte em 2002, dizendo que íamos mergulhar na hiperinflação.

Não vamos mergulhar em nada, nem a curto nem a médio prazo. Acho, sim, que o homem, num âmbito global, tem questões fundamentais a resolver sobre sua relação com o meio ambiente, com os recursos, com sua distribuição. O Brasil, por outro lado, vejo mais como uma nação que cresce do jeito que uma sociedade democrática recente (onde vigora, incontestável, e mais do que nunca, o capitalismo) consegue crescer. Um país com um passado pleno de conflitos, estruturas ainda muito viciadas, que evolui.

Os arrepios que venho sentindo, Jabor, são de ordem sensorial, no sentido do belo. Arrepios ao tocar um pianinho. Ao sentir o vento dourado de poente invernal varrer da cuca o bode preto. Arrepio dessa aragem boa que qualquer um, no carro, no asfalto, no morro, pode sentir, irmanando-se. Arrepio com um romance filosófico da lavra de “Paisagem com dromedário”, de Carola Saavedra. Arrepios de bicicleta. Da crença súbita no amor. E no amor ao Brasil. Ao que somos. Ao que fizemos até aqui. Na boa, Jabor. Pô. Vamos ouvir uma musiquinha. Dar uma respirada.

Publicado originalmente no jornal O Globo (Segundo Caderno), 21 de agosto de 2010.

Um comentário:

f.pereira disse...

Querido, só tive contato com o texto do Bloch Agora pelo seu blog e gostei muito. Tenho lido as últimas colunas de Arnaldo Jabor e surpreendido-me com os picos de pessimismo que ele tem alcançado. Sempre que lia as colunas de jabour discordava quase completamente, mas em geral ele conseguia me irritar, o lia com o proposito de me irritar, além desse estranho prazer, ele é irreverente e tem um ótimo texto. Nas últimas colunas, no entanto, a nuvem negra que ronda seus textos e já é uma de suas marcas registradas ganhou ares de tempestade, dessas que sempre recebem nomes femininos. O Arnaldo jabor que outrora me irritava, agora me arranca apenas risos. concordo com Bloch, respira um pouquinho jabour.