segunda-feira, 31 de maio de 2010
120 Anos da República no Brasil
Moderno São Paulo e a Política Nacional (Valor Econômico)
Luiz Werneck Vianna (CEDES/IUPERJ)
Nessa próxima sucessão, salvo mudanças catastróficas no estado atual da disposição das forças políticas do país, teremos mais um presidente extraído das fileiras ou do PSDB ou do PT, mais quatro anos para esse ciclo que se abriu em 1994 e que está destinado a completar duas décadas em 2014. Nenhum outro partido durante esse longo período conseguiu se projetar de modo competitivo a ponto de ameaçar a posição desses dois partidos nas disputas presidenciais, largamente majoritários nos resultados das eleições presidenciais, embora, como se saiba, não contem com força própria de sustentação no Poder Legislativo, dependentes, quando vitoriosos eleitoralmente, de amplas coalizões com outros partidos. Mas, essa ressalva, contudo, não contraria o fato de que ambos se constituam como partidos hegemônicos na estrutura partidária brasileira, e de que sejam reconhecidos como tais pelos demais partidos.
Mas essa hegemonia embute outra, qual seja o papel dominante do Estado de São Paulo na política da Federação. Tanto o PSDB como o PT são "partidos paulistas", nascidos de movimentos sociais que fizeram parte da resistência ao regime militar, o segundo com origem no sindicalismo da região do ABC, sede da moderna indústria metalúrgica, e, o primeiro, como expressão de círculos intelectuais e de políticos nucleados em torno de um diagnóstico comum sobre o que seriam os males do país. Desse tempo originário guardaram marcas que conservaram nos seus primeiros embates eleitorais, é verdade que, hoje, algumas delas bem esmaecidas, quando não relegadas ao plano do que deve ser esquecido. Contudo, a memória da infância nos partidos é como nas pessoas - um partido já formado é prisioneiro, de algum modo, da sua história de fundação.
PT e PSDB, embora procedentes de regiões diversas do social, vão ter em comum a valorização da matriz do interesse e a denúncia do patrimonialismo, e não à toa "Os Donos do Poder", o clássico de Raimundo Faoro, será referência de ambos ao começarem suas trajetórias. Aliás, Faoro foi um dos fundadores do PT e é celebrado como um dos ícones do partido. Precisamente nesse sentido é que podem ser compreendidos como partidos paulistas na medida em que localizam no Estado a raiz do nosso autoritarismo político, das políticas de clientela e de um burocratismo parasitário a impedir a livre movimentação da sociedade civil. No diagnóstico da época, era preciso emancipar os mecanismos da representação política dos da cooptação, traço do nosso DNA herdado da história ibérica. No caso dos sindicatos, preconizava o PT, era preciso romper com a Consolidação da Legislação Trabalhista (CLT), e conduzir suas ações reivindicativas para o sistema da livre negociação com os empresários, cuja força dependeria da sua capacidade de organização e de mobilização dos trabalhadores.
A matriz do interesse, além de moderna, seria libertária, vindo a significar uma ruptura com uma cultura política que afirmaria a primazia do Estado e dos seus fins políticos sobre a sociedade civil. Essas afinidades no ponto de partida não resistiram à exposição às circunstâncias da política. Nascidos no mesmo solo, com vários pontos em comum, essas duas florações da social-democracia brasileira, partindo de São Paulo, igualadas em força aí, mais do que aproximar as suas convergências, se entregam a uma dura luta por território. No plano da disputa nacional, essa luta se tem caracterizado pelo esforço desses partidos em arregimentar aliados que engrossem suas hostes, desequilibrando a disputa em seu favor.
Assim, essas expressões do moderno na política brasileira, que se têm encontrado em tantos pontos na modernização e expansão do capitalismo brasileiro, encaminham o seu antagonismo na disputa pelas forças do atraso político e social. Com isso, os impulsos modernizadores vindos de São Paulo são moderados pelo cálculo político que preside a disputa entre seus grandes partidos - um deles, o PSDB, governando o Estado há vinte anos e pretendente a governá-lo por mais quatro. Para cada qual importa, além das questões inarredáveis de suas agenda, capturar o maior número possível de forças aliadas, indiferentes ao atraso político e social que representam, como no caso, por exemplo, do Maranhão do clã de Sarney, cobiçado pelo PT, ou do PTB de Roberto Jefferson, objeto de desejo do PSDB.
Esses movimentos, meramente instrumentais para os fins da competição eleitoral, contudo, não são ingênuos quanto à própria história desses partidos, que mudam com eles. A surpreendente mudança do PT, que, de ácido crítico da Era Vargas e da tradição republicana em geral, passou a incorporar muito de suas práticas, pode ser explicada, em boa parte, por essa lógica. Assim, no movimento sindical, as forças genuinamente petistas, com um histórico de lutas contra o imposto sindical e o princípio da unicidade sindical, hoje se veem tangidas a participar de uma estrutura sindical que sempre condenaram como lesiva à autonomia dos trabalhadores. A resposta do PSDB, ao incorporar acriticamente o atraso, mimetiza a do PT. Aliás, nesta sucessão, alguém sabe qual o programa, do PSDB para a reforma trabalhista?
O velho sindicalismo, na carona do novo, encontrou sua sobrevida, moderando, quando não interditando em muitos aspectos relevantes, a passagem do moderno. O mesmo vem ocorrendo com os agentes do patrimonialismo das antigas oligarquias regionais, que preservam o seu domínio a partir de suas articulações com o moderno e dessa forma, cindido em dois como está, capitula de dirigir o atraso a fim de transformá-lo para simplesmente se associar a ele.
Publicado no Jornal Valor Econômico (31 de maio de 2010).
quinta-feira, 27 de maio de 2010
Segurança mútua (Coluna Cena Política - Rádio Catedral FM 102,3)
Olá, boa tarde! Curioso notarmos como certas marcas do passado provocaram traumas tão profundos na sociedade brasileira que, por vezes, eclodem nos momento menos esperados. Falo não de uma, mas das muitas marcações autoritárias em que o país testemunhou com dor a perda da liberdade, da possibilidade de participar e contestar, expressando opiniões contrárias ao que era tido como “certo”. Foi assim no Estado Novo em 1937 e no Regime Militar instalado a partir de 64, apenas para lembrar acontecimentos que se encontram no cume da história. Porém ela, a história, acredito que sirva precisamente a esse propósito: impedir que os traumas do passado esmoreçam no intento de evitar que o pior se repita, seja como tragédia, seja como farsa. Digo isso porque um período eleitoral é sempre a síntese de um tempo, ora curto, ora longo, mas que pode, sem dúvida, ser pensado como um bom momento de inflexão do passado, do presente e do futuro. As eleições que se aproximam colocam, novamente, a chance de pensarmos o país numa chave maior, onde os atores e os fatos são amarrados pela política na construção do que somos e seremos. O Brasil mudou, num tempo longo, para melhor. Consolidação de direitos, expansão de liberdades, expressão de diferenças, manutenção de instituições, no limite, o século que passou nos mostrou uma viagem capaz de irromper com previsões pessimistas feitas outrora, ainda que haja, sempre, muito por fazer. Contudo, hoje temos, sem medo de errar, uma democracia em muito melhor do que ontem e isso não pode, certamente, ser creditado apenas ao último governo. Ainda assim é usual ouvirmos que os traumas do passado podem repentinamente corroer as conquistas do tempo. Usual e bom. Como disse antes, talvez seja essa a virtuosa tarefa da história. Concorrente a ela, no entanto, incluo a tarefa dos atores do presente, incluo a nossa tarefa. No momento eleitoral que se aproxima enfrentaremos um gargalo onde as conquistas do passado, bem representadas pela transformação da sociedade brasileira que salta aos nossos olhos, serão objeto de disputa dos protagonistas. Dilma, Marina e Serra anseiam, mais do que a negação uns dos outros, ser a síntese do lado bom da nossa história. Mas a viagem, é bom lembrar, não é “redonda” e sim rumo ao futuro. Nela surgem novos temas, como a questão ambiental, por exemplo, e o mais importante é nos assegurarmos que seu percurso seja inquieto, mas pacífico. O presidente Lula é um mito, é o “filho do Brasil”, quanto a isso não vejo problema. A política talvez precise de líderes carismáticos como Lula. Isso não significa, entretanto, que o carisma possa suprimir as regras. A troca pacífica do poder por meio das eleições é o que a história nos mostra como o caminho “certo”. Não creio que o “filho do Brasil” seja contra isso e aqui se encontra a nossa tarefa: garantir que as eleições de 2010 reforcem o regime de segurança mútua que há pelos menos 16 anos vigora entre nós, onde quem é democraticamente derrotado, entrega o poder ao vencedor e aceita o consenso.
quinta-feira, 20 de maio de 2010
E o ficha limpa será aprovado... (Coluna Cena Política - Rádio Catedral FM 102,3)
Olá, boa tarde! Já está no Senado Federal o projeto que torna inelegíveis candidatos condenados em primeira instância por um colegiado de juízes, fruto de uma iniciativa popular apelidada de “ficha limpa”. Até então eu vinha chamando a atenção para a importância de discutirmos a iniciativa em termos políticos, ultrapassando o “moralismo” com o qual a proposta está sendo tratada pela mídia em geral e por diversos setores da opinião pública. Acho, no entanto, que os destaques que foram votados melhoraram e muito o projeto, não só por reparos pontuais, mas também pela reivindicação da classe política de discutir, democraticamente, a proposta. Sou contra a corrupção e considero positiva toda medida honesta de combate a ela. O que me incomoda no assunto “ficha limpa”, porém, é que em momento algum a sociedade havia parado para pensar melhorias e perigos embutidos na proposta, como se ela fosse o remédio para todos os nossos males. Democracia não é se calar diante de transformações que podem alterar substantivamente as regras do jogo político, por exemplo, mas exatamente o contrário: discutir, refletir, emitir opiniões, ponderar e, por fim, deliberar o suposto consenso ou, numa visão mais realista, manifestar a vontade da maioria. Mesmo assim, a onda de “moralismo” que acompanhou as discussões sobre o “ficha limpa” impediu que qualquer crítica ao projeto fosse feita sem que aqueles que se propusessem a melhorá-lo fossem tachados de corruptos ou defensores da corrupção. Não é bem assim. Pensar melhorias para as regras do jogo político é necessário. Mas devemos estar atentos a possíveis conseqüências imprevistas para que boas intenções não se traduzam em malefícios irreversíveis. E o mais importante, no meu juízo, sobre o projeto em questão é a sociedade brasileira perceber que não pode, em momento algum, abrir mão da política no encaminhamento e resolução dos problemas que nos afligem. Juízes podem ser um bom “filtro”, ainda que passíveis de erro, quando se trata de condenar, com base na lei, criminosos. Mas seguramente não são os personagens mais indicados quando se trata de discutir saneamento básico, cotas raciais, homofobia, desigualdade social, discriminação racial, gênero, reforma agrária, financiamento de campanha, voto obrigatório, saúde, educação e toda sorte de problemas que formos capazes de elencar como cruciais para o bom funcionamento do país. É a política a responsável por isso e não podemos esquecer dela. Que o “ficha limpa” venha, tudo bem; mas sem abrirmos mão do voto, da democracia, da boa discussão, da política. Boa tarde a todos e até o Cena Política da semana que vem!
A coluna Cena Política vai ao ar todas as quitas (por volta das 14:30h), na Rádio Catedral FM 102,3.
segunda-feira, 3 de maio de 2010
Direito, democracia e república (Valor Econômico)
Luiz Werneck Vianna (CEDES/IUPERJ)
A presença do Direito e de suas instituições na vida social e política contemporânea consiste em uma marca que, independente de juízo de valor quanto ao fato, se impõe ao observador. A bibliografia sobre o assunto é abundante e não para de crescer, girando, em boa parte, em torno da controversa questão que trata da chamada judicialização da política e das relações sociais. No Brasil, quando da sua recente despedida da presidência do Supremo Tribunal Federal, o juiz Gilmar Mendes, apresentando, em tom alarmado, estatísticas sobre a expansão da litigação no país – hoje, em torno de 80 milhões de ações em andamento – avançou o diagnóstico de que "a sociedade brasileira se tornou dependente do Judiciário". A ressalva a ser feita é a de que tal fenômeno não nos é singular, pois afeta, em maior ou menor medida, as sociedades ocidentais desenvolvidas. Antoine Garapon, reputado especialista francês no assunto, fixou em termos lapidares a natureza desse processo ao escrever que o Judiciário se teria tornado um moderno muro das lamentações.
A avaliação crítica desse fato, deplorado por uns como um sintoma de patologia da política contemporânea, visto como um sinal de vitalidade da democracia por outros, tem, no entanto, um registro comum: a invasão da vida social pelo Direito seria uma resposta ao esvaziamento da república, dos seus ideais e instituições, muito especialmente a partir dos anos 1970, quando a emergência triunfante do neoliberalismo, com suas concepções de um mercado autorregulado, importou o derruimento da arquitetura do Estado de Bem-Estar Social.
Esse tipo de Estado – não importam, aqui, considerações sobre o seu anacronismo na realidade de hoje –, em razão da sua forma específica, estava sustentado na organização política e sindical das diferentes partes da sociedade, cada qual identificada com seus interesses e projetos de uma vida boa, tal como expressos em seus partidos e sindicatos. O parlamento era uma de suas arenas, e, outra, não menos relevante, a das suas corporações e das disputas entre elas realizadas no interior do Estado e sob sua arbitragem, daí devendo resultar um "capitalismo organizado" orientado para o bem comum. Nesse sentido, o "Welfare State" foi republicano e se assentou sobre as suas principais instituições.
A imposição do neoliberalismo provocou a diluição das formas de solidariedade social que, de algum modo, o "Welfare" induzia, levando a uma intensa fragmentação da vida social, à desregulamentação de direitos, ao esvaziamento de partidos e sindicatos, que, ao lado de outros processos societais relevantes, foram fatores decisivos para que o Judiciário viesse a se converter em um novo lugar não só para a defesa de direitos, como também para sua aquisição.
O próprio legislador, consciente do quanto a sociedade se tinha tornado vulnerável diante do Estado e das empresas, vai fortalecer esse movimento a fim de lhe fornecer recursos de defesa, dando partida, assim, ao que se denominou a revolução processual do Direito, cujo marco mais representativo foi a criação da ação civil pública e, mais à frente, a institucionalização de códigos do consumidor, passando a admitir ações por parte de entes coletivos. No caso, uma das intenções implícitas do legislador foi a de tentar reanimar a vida republicana em cenários alternativos aos da representação política. Nesse novo registro, a república passa a ser tensionada por pressões de sentido democratizador que visam a conquista de novos direitos – o da infância, o da mulher, o do deficiente físico, o da cidade, o do ambiente, etc –, que são postos sob a tutela do poder judicial.
O caso brasileiro se alinha a essas tendências que mantêm sob tensão as relações entre república e democracia, mas certamente é singular. Em primeiro lugar, porque a república, aqui, nasce sem participação popular, filha que é da elite oligárquica de senhores de terras, refratária, ao longo de três décadas à incorporação dos seres sociais que emergiam do mundo urbano-industrial. A incorporação deles começa com a Revolução de 1930, quando se cria um sistema de direitos sociais em favor dos assalariados urbanos – não extensivo aos trabalhadores do campo –, mas que, em contrapartida, suprime a autonomia das suas associações e as põe sob tutela estatal.
Vale dizer, a república se "amplia", mas não se democratiza, persistindo como assunto de poucos.
A democratização da vida social é fato recente entre nós, e segue seu curso de modo cada vez mais intenso. Contudo, o problema agora se inverte: se temos democracia, estamos longe da república. Não há república sem vida ativa da cidadania na esfera de uma livre sociedade civil, protegida das políticas de cooptação do Estado e do poder do dinheiro. O constituinte de 1988 foi um bom intérprete da nossa realidade político-social ao dotar a sociedade de meios, inclusive judiciais, para a defesa da sua república, entre os quais o ministério público e a justiça eleitoral. O legislador não menos, quando criou a lei de Responsabilidade Fiscal.
A democracia de massas não pode abdicar da república, uma vez que, sem ela, é presa fácil para intervenções messiânicas, quando a decisão de um pode se justificar em nome do interesse geral de que ele seria o intérprete privilegiado. As eleições que se avizinham, mais uma vez, vão confrontar programas dos candidatos em torno de questões substantivas de relevância indiscutível, como educação, saúde, emprego e renda, mas a eles não pode faltar mais, como nas eleições anteriores, o tema da república e da auto-organização da cidadania. Já são décadas de modernização, chegou a hora do moderno.
Publicado no Jornal Valor Econômico (03 de maio de 2010).