sexta-feira, 6 de novembro de 2009

O barulho e a surdez.

Na semana passada mais um caso de violência irrompeu os noticiários nacionais. Como tem se tornado costume, o episódio reverberou nos sítios de compartilhamento de vídeos, como o Youtube, recuperando, inclusive, acontecimentos similares nos últimos meses. Trata-se do ocorrido no dia 22 de outubro de 2009, quando a estudante Geysi Arruda, aluna do curso de Turismo da Uniban no ABC paulista, foi hostilizada pelos “colegas” universitários por trajar um vestido considerado curto, com base em parâmetros seletivos, certamente. As imagens da aluna sendo ovacionada “puta” por um corredor abarrotado de estudantes, no momento em que era escoltada por policiais para fora, chama a atenção para o modo como a sociedade contemporânea tende a tornar “patológico” exatamente o excesso do que ela mesma prescreve como sendo o “padrão”. Curioso notarmos como determinadas práticas convertem-se em “doença” num passe de mágica: comida saudável, malhação e a utilização de anabolizantes animais; emagrecimento, prótese de silicone e transtornos por repetidas intervenções cirúrgicas; dentre outras. Ainda que o fato evidencie uma variada gama de inflexões sociológicas, como a separação entre a moralidade e a legalidade – o aparato repressivo do Estado foi convocado para frear “malta” ensandecida a partir de julgamentos morais –, me incomoda o modo como a grande mídia teima em retratar fenômenos heurísticos dos rumos perversos de uma sociedade que privilegia o “belo” e enaltece a ausência de mediadores – como o simples diálogo –, em favor da cultura dos meios, seja o dinheiro ou a violência. No domingo à noite, o semanário em progressivo declínio de audiência da Rede Globo de Televisão, Fantástico, noticiou o episódio envolvendo Geysi Arruda lembrando de fato semelhante ocorrido em abril, quando uma aluna do curso de Educação Física decidiu não participar de uma manifestação de estudantes contra o sistema de avaliação da Uniban, sendo também agredida pelos “colegas”. Na matéria que foi ao ar, os dois episódios são tratados como aparentemente “iguais”, no que eu talvez concorde, sem, entretanto, aceitar o modo como a reportagem encerra a análise: Gloria Kalil, consultora de moda do programa, comenta o fato dizendo que “o modo como nos vestimos é um recado que damos ao mundo”, e isso a aluna parece “não ter entendido”. É perturbador imaginar que ambas as agressões tratam-se apenas de um “delito” no plano da moda, como se Gloria Kalil, ao comentar hipoteticamente o outro episódio, dissesse: não é “chique” sair de uma manifestação de estudantes, é “deselegante”. Nada contra a moda ou o respeito a padrões civilizacionais, apenas reivindico que não rebaixemos nosso olhar diante de acontecimento que manifestam a tendência de um mundo triste, cada vez mais incapaz de negociar com a diferença. Mesmo a vítima, em declarações para a imprensa, traduz o perigo quando diz: “eu não sou esse tipo de gente que disseram”. Que tipo? Será que ela quis dizer que é igual aos que a agrediram verbalmente por “confusão”? Acho que algo mais do que se vestir errado deve explicar a incompreensão mútua. Temo pelo barulho e pela surdez.
Para assistir a reportagem do Fantástico comentada no artigo, clique aqui.

12 comentários:

Elisa Franco disse...

Espantosa é a forma como Glória Kalil limita o fato ao "problema" da vestimenta. Como se a barbárie pudesse ser apaziguada diante das supostas intenções da garota ao escolher um vestido curto.
E, ainda, se a vítima fosse do "tipo" que disseram, mereceria a agressão?
Mais um espetáculo midiático que entretém e não muda nada.

Unknown disse...

Elisa, concordo com você: é como se Glória Kalil fosse incapaz de enxergar para além do "evidente", para além do "sintoma", quando na verdade existem causas profundas que se manifestam em diferentes situações, como neste episódio.

Ricardo disse...

Apenas pra colocar as coisas dentro de uma perspectiva mais justa e evitar os mesmos erros daqueles alunos: Essas entrevistas como a que a Gloria Kalil deu geralmente tem um tempo muito longo de duração. O que vai ao ar são algumas poucas frases selecionadas de acordo com a conveniência do editor da matéria, retiradas de um contexto muito mais abrangente. Ninguém sabe qual foi a pergunta ou sequência de perguntas que ela estava respondendo. Ninguém sabe o que mais ela acrescentou ou corrigiu ao longo da entrevista. Muitas vezes, o editor faz a edição de modo a criar uma polêmica proposital, que vai gerar o prolongamento do interesse na matéria através de debates paralelos que vão, pouco a pouco, desviando a atenção dos telespectadores para o que realmente importa. Em outras palavras, tudo vira uma grande bagunça com todos falando ao mesmo tempo coisas desencontradas, sem que se saiba mais como tudo começou. Tenho certeza absoluta que foi exatamente isso o que aconteceu naquelas duas noites distintas. Ninguém ali sabia realmente o que estava acontecendo e porque estavam agredindo a uma pessoa que nem sequer conheciam. Infelizmente, nós somos assim. Basta ouvirmos uma voz gritar "pega ladrão!" pra pegarmos um pau e começarmos a correr atrás de quem não sabemos coisa alguma. Geralmente, só vamos descobrir que era um engano quando já é tarde demais.

Unknown disse...

Raro Diogo,
Muito pertinente a sua reflexão, o episódio em questão me lembrou o livro da Margareth Rago do Cabaré ao Lar, o qual reproduzo um pequeno resumo de uma de suas passagens publicado pela professora Vanda Lúcia:

"A CONDIÇÃO FEMININA: INTERFACES DE REBELDIA E SUBMISSÃO, SILÊNCIOS E HISTÓRIAS.
Vários filósofos, sacerdotes, moralistas, médicos, em diversas épocas e sociedades, escreveram
sobre a conduta e a natureza feminina, buscando estabelecer um ideal de mulher.
Frutos, principalmente, da Contra-Reforma, os tratados de Teologia moral e os manuais de confessores continham normas repressoras da sexualidade humana, recomendando comedimento sobre o prazer sexual. Diversos foram esses compêndios que, traduzindo os valores morais e culturais referendados pela tradição judaico-cristã, ensinavam que as mulheres deveriam ser submissas aos homens, fiéis e honradas. Segundo ALGRANTI(1993), nas sociedades ibéricas e suas colônias no século XVIII, acentuamse a valorização da honra feminina e esta tem origens tanto religiosas quanto culturais. A associação entre pecado e sexo sem o motivo da procriação é uma das razões dessa valorização. Portanto, a honra feminina está diretamente ligada às relações entre os sexos.
TWINAM(1989), em seu estudo sobre a mulher colombiana, afirma que a tensão entre honra e
sexualidade afetou as mulheres de todos os níveis sociais. Ela conclui que, a partir dos códigos canônicos, civis e mesmo do costume do povo, surgiram os padrões para medir e para vincular a honra às relações
sexuais. No século XVIII, a concepção de mulher honrada era daquela que reprimia seus instintos e seus desejos, era a mulher recatada, que escondia o seu corpo, porque tinha ciência do seu poder de sedução. No século XIX, consolidou-se como ideal de mulher aquela que aceitava a sexualidade como função
reprodutora, a honrada e virtuosa. Esse era o espaço prescrito para as mulheres, mas houve outros,
aqueles construídos por elas próprias, vividos na tensão entre o instituído e o instituinte."

Entre o barulho e a surdez entendo que se hoje o clero não dita mais as normas de comportamento e o Estado laico possa se omitir ante a questão, temos nuances mais sutis de formas de exercer o poder e reprimir. O discurso da mídia é uma e aqui as observações de Foucault no seu microfísica do poder são muito elucidativas para a questão. Tendo a refletir que a sociedade contemporânea, embora se sinta confortavelmente distante de práticas antigas, em algums episódios se comporte de forma mais agressiva, justamente por possuir este grau de sofisticação, que aquelas vindas de um passado distante ou recente. Nesse sentido não é inocente a declaração de Glória Kalil a representar uma parte da sociedade, justamente esta que a Globo teima em ditar como a mais adequada. No caso da vítima me pergunto sobre o paradoxo em que a vítima, para se defender, só saiba reproduzir o ato de seu algoz. E nós o que faremos, ante esta miseranda contemporaneidade, febril, cega e alucinada? Entre o barulho e a surdez pode estar também a cegueira... Reproduzo então a epígrafe do Ensaio de Saramago "Se queres ver, repara".

Tiago Rattes de Andrade disse...

Belo texto Diogo!

Unknown disse...

Ricardo,

Grato pela leitura e pelo comentário. Concordo que por vezes o processo de edição distorça o que foi dito, mas acho grave a simples opção do Fantástico por ela, uma consultora de moda, quando a causa de fundo é outra. Não por acaso, hoje o programa, numa matéria muito mais responsável do que a veinculada semana passada, noticiou a expulsão da aluna da Uniban, resultado de uma sindicância interna. Motivo: ela se vestiu mal. Será que isso é realmente um "motivo"?

Unknown disse...

João,

Grato pelo texto, ótima lembrança... sempre erudito!

Rattes,

Valeu pela leitura. Fico satisfeito com a sua presença aqui.

Unknown disse...

Excesso de informação e carência de reflexão. É isso que notamos em nossa sociedade midiática. As questões essenciais e as raizes dos problemas são sempre colocadas em segundo plano, enquanto o que é superficial e aparente vira tema de discussão. As pessoas possuem maior acesso à informação, aos meios de comunicação, mas estão cada vez menos conscientes e ativas. "Temo pelo barulho e pela surdez". Como sempre, muito bom o texto!

Bella Mendes disse...

Diogo, achei muito pertinentes as considerações sobre o tratamento midiático do tema e tive as mesmíssimas impressões quando assisti a reportagem. No meio da semana, soube do caso, na nossa viagem à Anpocs, via Record. Outra abordagem - eles não tem a Glorinha Kalil, por exemplo, nem os mesmos "critérios" (?) de edição. O que não diminui o alarde. Ainda, porém, que o tratamento dado pela Rede Globo seja preocupante, por refletir e projetar opiniões "hegemônicas", me espantou ainda mais algumas das "inflexões sociológicas", como vc chamou, e acredito que são elas - e a mídia é só representativa de uma delas - que tornam possíveis diferentes edições da matéria não repercutirem ações mais "humanas". Uma, apontada por vc, em que a estudante chega a admitir que talvez tenha realmente exagerado no tamanho da saia!!! - transformação da vítima em réu num passe de mágica, no tribunal de Kalil, dos alunos, da direção da Uniban - que decidiu expulsar a aluna - e de muitos de nossa sociedade - uma "zapeada" no google revela opiniões barulhentas e surdas da "sociedade civil" em geral. A segunda, diretamente ligada à primeira, e que já foi pauta de nossas conversas, o fato de uma Universidade, local da diversidade, do aprendizado, da crítica, do debate - inclusive estético - ser o palco da ação acrítica e intolerante, de alunos e direção.

Unknown disse...

Allana,

Grato por sua leitura sempre generosa com o que escrevo. Aliás, seus comentários tendem a ser mais claros do que eu, rs. Um abraço.

Unknown disse...

Bella,

Acho que a Uniban dimensionou mal a repercussão do caso, o que felizmente depõe a favor da boa reflexão produzida à margem da grande imprensa. Me espantei positivamente com uma manifestação ontem, armada na porta da Universidade, contra a instituição, que talvez manifeste uma "barulho" melhor, se isso é possível. O problema agora é que a vitimização da aluna também pode, em alguma medida, produzir "surdez". Valeu pela leitura e pelo debate.

Bella Mendes disse...

Sim, sim! logo depois que escrevi fiquei pensando nessa questão da vitimização da aluna...
E concordo com sua reflexão a respeito da manifestação.
Muito bons os textos daqui e pra rádio, parabéns pelo trabalho, viu? Espero que em breve a gente possa fazer algo semelhante lá no nosso de Sociologia da Comunicação! Beijo