Da idolatria ao Capitão Nascimento à morte do menino João Roberto: a gente já viu esse filme.
Arnaldo Bloch
De tudo o que se disse até agora sobre a morte do menino João Roberto, para lá dos especialistas e palpiteiros, as palavras mais sensatas foram, de longe, as do pai da vítima, Paulo Roberto Soares: “O Estado não tem carta branca para matar ninguém. Aqui não tem pena de morte. E se fossem bandidos? Que prendessem os caras!” Tamanhas clareza e consciência do estado de direito são de espantar no quadro atual, ainda mais vindos do pai da vítima, que poderia estar, até justificadamente, tomado por idéias de vingança. Se o pensamento de Paulo Roberto fosse o mesmo que orientasse as ações – e, por que não dizer?, a doutrina – da PM, seu filho ainda estaria vivo.
Mas, infelizmente, as idéias de Paulo Roberto estão longe de predominar, e não é só na PM: na sociedade como um todo e, especialmente, no Rio de Janeiro, suas palavras soam absurdas. Na cidade onde ainda imperam as teses de que “bandido bom é bandido morto” e de que “direitos humanos são coisa de amigo de meliante”, onde se aplaude execução de ladrão de galinha atrás de camburão na entrada do Rio Sul, quem é que vai dar ouvidos à sensatez de Paulo Roberto?
O pensamento reinante, ao contrário, é de que o Estado tem, sim, direito de executar, e deve fazê-lo, sistematicamente. De que a pena de morte só não existe no papel, porque, na dura realidade, tem mesmo é que metralhar.
Dizer, como fez o pai de João Roberto, que, bandido ou inocente, criança ou facínora, “aqui não se mata, aqui se prende” soa como uma afronta à lógica estabelecida. Não à toa, foi rapidamente aceita como definitiva a tese de que a morte de João Roberto foi um fato grave, mas de ordem técnica, cuja origem está na falta de treinamento e de reciclagem dos policiais.
Não nos enganemos. Ainda que os PMs precisem de cursos (assim como precisam de melhores salários e condições de trabalho), o problema central está longe de ser esse. Mais que os PMs, quem está precisando de uma reciclagem é a sociedade civil e suas idéias envelhecidas, autoritárias, covardes, que se refletem, naturalmente, nas instituições. No final, é claro que uma bala vai acabar ricocheteando na cabeça de um de nossos filhos. Difícil é enxergar a que ponto a bala foi disparada por nós mesmos.
Ou será que já esquecemos que, menos de um ano atrás, o matador e torturador Capitão Nascimento, de “Tropa de elite”, virou ídolo nacional? Esquecemos que, no último réveillon de Angra, ele foi destaque no desfile de embarcações? Esquecemos que, em nossa cidade, os batalhões, para se motivar, saem às ruas “animados” pela trilha do filme?
Esquecemos que estamos no Rio de Janeiro, estado e cidade das chacinas de menores, das milícias, da Assembléia e da Câmara lotadas de figuras da mais baixa estatura moral, criminosos de ficha gorda, corruptos de carteirinha, representantes legais das máfias que arrotam projéteis em nossas ruas à luz do dia (e olha que nem falamos ainda do tráfico...).
O que matou o menino João Roberto não foi a falta de treinamento. Foi o culto à morte que, faz tempo, se estabeleceu por aqui. Um culto relacionado, sim, à noção de conflito generalizado, mas que não se restringe a este aspecto circunstancial: transformou-se, já, numa sede, numa fome de matar, desejo permanente de vingança que, facilmente, animada pela cultura de massa, se converte num prazer cinematográfico, uma personificação coletiva dos heróis assassinos, uma compensação ilusória para a impotência do cidadão.
A impotência do cidadão, contudo, não fruto só de sua vitimização pelo poder público, pela bandidagem, pela injustiça, pelo que quer que seja: a impotência é também uma escolha. A escolha de permanecer na ignorância. A escolha de não assumir a própria responsabilidade na disseminação da doutrina da morte. A escolha (esta, internacional) de não debater temas fundamentais, como a relação direta entre a proibição das drogas e fortalecimento do tráfico e, conseqüentemente, de seus tentáculos nas estruturas corruptas instaladas nas instituições.
A escolha do preconceito. A escolha da humilhação. A escolha de aprovar os presídios superlotados, onde se cultiva mais e mais sede de vingança, numa dinâmica de retro alimentação que, no fim da linha, faz sofrerem não apenas os detentos – mas quem está fora, achando que encarcerar gente como se encarcera porco (os porcos são mais bem tratados) vai resultar em alguma paz social. Como se a resposta não viesse em dobro e, talvez, através de uma saraivada de tiros cravada pelas forças da lei no coração de alguém que a gente ama.
Que coragem a do pai de João Roberto contrariar esse discurso velho, infame, irracional, que predomina entre nossos pares. Não tivesse ele perdido o filho e dissesse mesma coisa, já estaria sendo apedrejado. Coragem como a dele, só a de admitir a nossa parte de culpa na morte de João. Se conseguirmos, será um primeiro passo rumo à verdadeira justiça e a uma sociedade melhor.
Mas, infelizmente, as idéias de Paulo Roberto estão longe de predominar, e não é só na PM: na sociedade como um todo e, especialmente, no Rio de Janeiro, suas palavras soam absurdas. Na cidade onde ainda imperam as teses de que “bandido bom é bandido morto” e de que “direitos humanos são coisa de amigo de meliante”, onde se aplaude execução de ladrão de galinha atrás de camburão na entrada do Rio Sul, quem é que vai dar ouvidos à sensatez de Paulo Roberto?
O pensamento reinante, ao contrário, é de que o Estado tem, sim, direito de executar, e deve fazê-lo, sistematicamente. De que a pena de morte só não existe no papel, porque, na dura realidade, tem mesmo é que metralhar.
Dizer, como fez o pai de João Roberto, que, bandido ou inocente, criança ou facínora, “aqui não se mata, aqui se prende” soa como uma afronta à lógica estabelecida. Não à toa, foi rapidamente aceita como definitiva a tese de que a morte de João Roberto foi um fato grave, mas de ordem técnica, cuja origem está na falta de treinamento e de reciclagem dos policiais.
Não nos enganemos. Ainda que os PMs precisem de cursos (assim como precisam de melhores salários e condições de trabalho), o problema central está longe de ser esse. Mais que os PMs, quem está precisando de uma reciclagem é a sociedade civil e suas idéias envelhecidas, autoritárias, covardes, que se refletem, naturalmente, nas instituições. No final, é claro que uma bala vai acabar ricocheteando na cabeça de um de nossos filhos. Difícil é enxergar a que ponto a bala foi disparada por nós mesmos.
Ou será que já esquecemos que, menos de um ano atrás, o matador e torturador Capitão Nascimento, de “Tropa de elite”, virou ídolo nacional? Esquecemos que, no último réveillon de Angra, ele foi destaque no desfile de embarcações? Esquecemos que, em nossa cidade, os batalhões, para se motivar, saem às ruas “animados” pela trilha do filme?
Esquecemos que estamos no Rio de Janeiro, estado e cidade das chacinas de menores, das milícias, da Assembléia e da Câmara lotadas de figuras da mais baixa estatura moral, criminosos de ficha gorda, corruptos de carteirinha, representantes legais das máfias que arrotam projéteis em nossas ruas à luz do dia (e olha que nem falamos ainda do tráfico...).
O que matou o menino João Roberto não foi a falta de treinamento. Foi o culto à morte que, faz tempo, se estabeleceu por aqui. Um culto relacionado, sim, à noção de conflito generalizado, mas que não se restringe a este aspecto circunstancial: transformou-se, já, numa sede, numa fome de matar, desejo permanente de vingança que, facilmente, animada pela cultura de massa, se converte num prazer cinematográfico, uma personificação coletiva dos heróis assassinos, uma compensação ilusória para a impotência do cidadão.
A impotência do cidadão, contudo, não fruto só de sua vitimização pelo poder público, pela bandidagem, pela injustiça, pelo que quer que seja: a impotência é também uma escolha. A escolha de permanecer na ignorância. A escolha de não assumir a própria responsabilidade na disseminação da doutrina da morte. A escolha (esta, internacional) de não debater temas fundamentais, como a relação direta entre a proibição das drogas e fortalecimento do tráfico e, conseqüentemente, de seus tentáculos nas estruturas corruptas instaladas nas instituições.
A escolha do preconceito. A escolha da humilhação. A escolha de aprovar os presídios superlotados, onde se cultiva mais e mais sede de vingança, numa dinâmica de retro alimentação que, no fim da linha, faz sofrerem não apenas os detentos – mas quem está fora, achando que encarcerar gente como se encarcera porco (os porcos são mais bem tratados) vai resultar em alguma paz social. Como se a resposta não viesse em dobro e, talvez, através de uma saraivada de tiros cravada pelas forças da lei no coração de alguém que a gente ama.
Que coragem a do pai de João Roberto contrariar esse discurso velho, infame, irracional, que predomina entre nossos pares. Não tivesse ele perdido o filho e dissesse mesma coisa, já estaria sendo apedrejado. Coragem como a dele, só a de admitir a nossa parte de culpa na morte de João. Se conseguirmos, será um primeiro passo rumo à verdadeira justiça e a uma sociedade melhor.
E-mail para a coluna do autor: arnaldo@oglobo.com.br
Fonte: Jornal O Globo (Sábado, 12 de julho de 2008)
9 comentários:
Esse texto me fez lembrar de um documentário “Ônibus 174”, José Padilha (diretor) fez uma investigação minuciosa, baseada em imagens de arquivos, entrevistas e documentos oficiais, sobre o seqüestro do ônibus 174; seqüestro que aconteceu em plena luz do dia na zona sul do Rio de Janeiro, filmado por cerca de 4h por quase todos os canais de TV do país em 12 de junho de 2000.
No documentário, você conhece a história do seqüestrador “Sandro” e talvez mude a sua opinião em relação ao que vem acontecendo no Brasil, afinal, de quem é a culpa de tantos assaltos? Quem é o culpado de tanta violência? Seria possível alguém nascer para ser bandido?
Infelizmente, é mais fácil virar o rosto do que encarar de frente a própria realidade.
Flavia Vilela
Flávia, também gosto muito desse documentário. Ele consegue ser bem triste... pensar nas "escolhas" e nos constrangimentos que nos levam a elas.
Também vi "Ônibus 174", é um ótimo documentário para aulas do ensino médio, refletindo sobre aquilo que o prof. Luis Eduardo Soares definiu como "invisibilidade social" e a política estatal para garantia desta.
Outro documentário imperdível chama-se "Ato dos Homens" e fala sobre a maior chacina ocorrida no estado (de calamidade) do Rio de Janeiro: a matança que vitimou mais de 30 pessoas numa tarde de 2005 em Nova Iguaçu/Queimados.
Enfim, o que o articulista de O Globo retrata é uma política pública(?!?) premeditada e continuada para se manter os feudos do banditismo carioca, presonificado na figura do PMDB/RJ e seus asseclas (Serginho Cabral, Garotinho, Picciani e etc.).
Duas são as questões:
1) Jornal vive de manchete e dinheiro, por isso a "espetacularização" abunda, mesmo que em forma de editoriais raivosos e artigos indignados.
2) São estes mesmos veículos majoritários de informação que dão sustentação a esses grupos políticos no estado.
Uma roda vive perversa, lubrificada à sangue pobre, preto, marginalizado em 95% dos casos (Fonte: DataSamir). Precisamos denunciar essa barbárie.
www.blogdovq.blogspot.com
De fato, um polêmico artigo. E vou seguindo na discussão puxada pela Flavinha. Em tempos em que assume-se e aproveita-se da borragem das fronteiras entre ficção e documentário, fui ver "Era uma vez", em cartaz. Não consegui não escrever sobre (só algumas impressões, sem grandes pretensões críticas do filme ou do debate aqui em questão, para o qual faltam-me mesmo idéias e palavras). Mas, se me permite, Diogo, não pude deixar de me referir a vc e seu blog, ainda que nos hiperlinks...
http://vidaempeliculas.blogspot.com/2008/08/era-uma-vez.html
Abraço e bom debate.
Valeu pela indicação. O artigo é um tanto emotivo, mas dá o que pensar. Ainda vou estudá-lo com mais atenção, depois voltamos ao assunto.
Um abraço e até.
Samir, concordo com você em relação ao papel dos meios de comunicação na construção de "guetos" e na defesa de intervenções nada positivas no exercício da segurança pública, como a entrada do exército, por exemplo. Um abraço.
PS: gostei do blog.
Bella, legal seu texto! Curioso como o mundo sugere certas "escolhas" como sendo algo fácil. Bjo.
O Arnaldo Bloch que me desculpe, mas esse discursinho dele sobre a nossa "sociedade autoritária" é mais velho que a madeira da Arca de Noé e, sinceramente, discordo completamente dele. Quando temos um governo estadual cuja diretriz para a segurança pública é a do enfrentamento letal, fica difícil acreditar que a opinião da sociedade valha alguma coisa nessa situação. Claro que há um consentimento velado à violência policial e ele nem é tão velado assim. Mas o caso é que, muitas vezes, em situações caóticas, as pessoas acabam admitindo qualquer coisa para que o "mal maior" não as atinja e fica a impressão de que somos uma sociedade violenta quando, na verdade, trata-se de uma sociedade desesperada.
Ou não.
* valeu Diogão, boa iniciativa.
Interessante a idéia de uma "sociedade desesperada"...
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