Diogo Tourino de Sousa
Transcorridos 20 anos da promulgação da Constituição de 1988 algumas de suas inovações institucionais, como a reformulação da atuação e dos instrumentos dos nossos Tribunais Superiores, passam a representar para o conjunto da sociedade brasileira importantes mecanismos para o funcionamento da democracia, assumindo o protagonismo em inúmeras situações e demonstrando sua progressiva independência ante outros atores da cena política nacional. Hoje, antigas práticas de intromissão por parte daqueles que deveriam zelar pela integridade da justiça no país mostram-se cada vez mais dificultadas, seja pela atuação de esferas do Poder Judiciário, representadas pela constante presença dos seus operadores na sociedade, seja pela ação de corporações de fora do mundo ordenado da política, como o caso das investigações da Polícia Federal (PF), presença que deve, seguramente, ser tomada com cuidado.
No entanto, o processo eleitoral que se anuncia em 2008 para a sucessão do Executivo e do Legislativo municipal traz mais um sinal positivo desse avanço, também nos mecanismos eleitorais, comprovando a importância de um fenômeno de longa duração na história brasileira em todas as suas contradições: a atuação da lei enquanto força motriz para o avanço e consolidação da política entre nós. Isso porque, a resolução no. 22.718 de 28 de fevereiro de 2008, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), órgão máximo da Justiça Eleitoral no país, que regula a propaganda e as condutas vedadas aos agentes públicos em campanha – disposição já vista no pleito de 2006 em âmbito nacional –, manifesta a tentativa da lei de impedir que o poder econômico interfira na competição democrática entre os candidatos, penalizando eventuais crimes eleitorais com multas e detenções.
Mais do que legislar sobre o calendário e controlar eventuais calúnias entre os concorrentes, algo que o TSE já fazia em eleições anteriores, o que há de novo na resolução em questão é o impedimento da conhecida confecção de brindes (como camisetas, bonés e broches), da fixação de cartazes em locais de uso público (inclusive clubes, cinemas e centros comerciais, ampliando o conceito de “público” em vigor nas eleições passadas), da realização de “showmícios” e da aparição de artistas (remunerados ou não, com vistas a impedir eventuais influências no eleitorado), a limitação do tamanho dos cartazes fixados em propriedades particulares (no máximo 4m²), dentre outros. Isto é, trata-se de uma série de restrições englobadas num conjunto de instruções, tornadas claras logo em seu art. 5º, que, ao fazer referência ao que entende como prática de propaganda a ser evitada, destaca como tal o emprego de meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais.
Mesmo os novos meios de divulgação, como o uso de blogs e sítios de relacionamento na internet, foram incluídos pelo TSE na resolução, criando domínios específicos, com formato padrão de endereço e tempo previsto de existência, para a propaganda eleitoral. Mas são os seus capítulos VI VII, que dispõem respectivamente sobre a programação normal do rádio e da televisão e sobre a propaganda eleitoral gratuita nesses veículos, àqueles aos quais o TSE dedicou, novamente, maior atenção, em vista da audiência e alcance que gozam na sociedade brasileira, algo que tende, ainda, a sofrer o impacto das novas exigências: na medida em que a resolução atinge substancialmente práticas de rua amplamente utilizadas no passado, a propaganda eleitoral deste ano voltar-se-á mais intensamente para o horário no rádio e televisão.
Todavia, não podemos excluir uma possibilidade “negativa” que a resolução apresentada pelo TSE acarreta ao cercear a “poluição” visual vista nas eleições passadas, ocasionando transformações na campanha, especialmente no que se refere ao envolvimento do eleitorado e da população como um todo. O cenário encontrado na concomitante campanha para a presidência dos EUA, centralizada na disputa entre o candidato democrata Barack Obama e o republicano John McCain, representa um contraponto interessante. Lá a presença de artistas e a utilização de peças publicitárias de alto grau de elaboração é prática comumente aceita, cabendo apenas a importante ressalva de que o comparecimento eleitoral no país não é obrigatório por lei. Isso leva as campanhas a se ocuparem, inclusive, com a motivação para a participação eleitoral, associada à defesa de um eventual candidato, na tentativa de reverter o quadro de desinteresse identificado pela revista Time nas eleições de 2004, quando apenas 42% da população americana entre 18 e 29 anos se diziam “atentos às eleições”.
A limitação no uso da propaganda poderia representar, como a comparação com o caso norte-americano sugere, um freio ao florescimento do que os antropólogos Moacir Palmeira e Beatriz Heredia bem definiram como o “tempo da política” para descrever o momento em que a eleição começa no imaginário do eleitorado a partir da presença dos cartazes, camisas, brindes, auto falantes, caixas de som etc. Em meio às inúmeras “operações” coordenadas pela PF, gravações, indiciamentos, prisões, habeas corpus e demais jargões policiais e jurídicos que ocupam os meios de comunicação, povoando críticas e reforçando desconfianças antigas da população brasileira com relação a viabilidade da política enquanto espinha dorsal da vida nacional, o não envolvimento do eleitorado nas campanhas talvez seja um mal a ser combatido. Talvez sua adesão à política seja, igualmente, uma questão.
No entanto, nosso mal não parece ser análogo ao individualismo identificado na sociedade americana, expresso inclusive na sua legislação, onde o cidadão se vê “livre” para opinar ou não no processo democrático. A legislação eleitoral brasileira é imbuída da defesa de um ideal republicano traduzido na obrigatoriedade da participação eleitoral, momento em que a cidadania desperta para a existência de outras individualidades, com anseios e desejos próprios, que não apenas a sua. Dessa forma, o dilema aqui a ser combatido se refere muito mais a necessidade de medidas que tornem nossa república cada vez mais democrática do que a preocupação em convencer os cidadãos de que sua presença é importante, como o crescimento do número de eleitores e o incremento dos mecanismos eleitorais atestam.
Nesse processo, o objetivo é conciliar a atuação de instituições próprias do direito, bem localizadas pela Constituição de 1988 na democracia contemporânea, com a esfera da política. Compreender o papel democrático de corporações de fora do seu mundo, sem transformá-las em figuras “salvacionistas” que tornem o fazer propriamente político um exercício diminuto, torna-se o desafio real. Conforme sugere Luiz Werneck Vianna, o verdadeiro caminho para a consolidação da democracia no país se apresenta mediante a correta compreensão do papel dessa nova institucionalidade atribuída ao direito, aliada à construção de uma esfera pública reflexiva, que tematize os principais problemas da sociedade brasileira, devolvendo à política o seu lugar na ordem democrática.
Com isso, se o que entendemos por democracia é algo comprometido com o ideal de igualdade, o TSE parece tentar cumprir seu papel virtuoso e republicano ao controlar os abusos do poder econômico testemunhados em campanhas anteriores, tornando o acesso ao exercício da política mais justo. Depois de compreendido corretamente seu papel, resta apenas asseguramos que isso não nos faça perder de vista o necessário horizonte cívico da participação dos eleitores no “tempo da política”.
No entanto, o processo eleitoral que se anuncia em 2008 para a sucessão do Executivo e do Legislativo municipal traz mais um sinal positivo desse avanço, também nos mecanismos eleitorais, comprovando a importância de um fenômeno de longa duração na história brasileira em todas as suas contradições: a atuação da lei enquanto força motriz para o avanço e consolidação da política entre nós. Isso porque, a resolução no. 22.718 de 28 de fevereiro de 2008, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), órgão máximo da Justiça Eleitoral no país, que regula a propaganda e as condutas vedadas aos agentes públicos em campanha – disposição já vista no pleito de 2006 em âmbito nacional –, manifesta a tentativa da lei de impedir que o poder econômico interfira na competição democrática entre os candidatos, penalizando eventuais crimes eleitorais com multas e detenções.
Mais do que legislar sobre o calendário e controlar eventuais calúnias entre os concorrentes, algo que o TSE já fazia em eleições anteriores, o que há de novo na resolução em questão é o impedimento da conhecida confecção de brindes (como camisetas, bonés e broches), da fixação de cartazes em locais de uso público (inclusive clubes, cinemas e centros comerciais, ampliando o conceito de “público” em vigor nas eleições passadas), da realização de “showmícios” e da aparição de artistas (remunerados ou não, com vistas a impedir eventuais influências no eleitorado), a limitação do tamanho dos cartazes fixados em propriedades particulares (no máximo 4m²), dentre outros. Isto é, trata-se de uma série de restrições englobadas num conjunto de instruções, tornadas claras logo em seu art. 5º, que, ao fazer referência ao que entende como prática de propaganda a ser evitada, destaca como tal o emprego de meios publicitários destinados a criar, artificialmente, na opinião pública, estados mentais, emocionais ou passionais.
Mesmo os novos meios de divulgação, como o uso de blogs e sítios de relacionamento na internet, foram incluídos pelo TSE na resolução, criando domínios específicos, com formato padrão de endereço e tempo previsto de existência, para a propaganda eleitoral. Mas são os seus capítulos VI VII, que dispõem respectivamente sobre a programação normal do rádio e da televisão e sobre a propaganda eleitoral gratuita nesses veículos, àqueles aos quais o TSE dedicou, novamente, maior atenção, em vista da audiência e alcance que gozam na sociedade brasileira, algo que tende, ainda, a sofrer o impacto das novas exigências: na medida em que a resolução atinge substancialmente práticas de rua amplamente utilizadas no passado, a propaganda eleitoral deste ano voltar-se-á mais intensamente para o horário no rádio e televisão.
Todavia, não podemos excluir uma possibilidade “negativa” que a resolução apresentada pelo TSE acarreta ao cercear a “poluição” visual vista nas eleições passadas, ocasionando transformações na campanha, especialmente no que se refere ao envolvimento do eleitorado e da população como um todo. O cenário encontrado na concomitante campanha para a presidência dos EUA, centralizada na disputa entre o candidato democrata Barack Obama e o republicano John McCain, representa um contraponto interessante. Lá a presença de artistas e a utilização de peças publicitárias de alto grau de elaboração é prática comumente aceita, cabendo apenas a importante ressalva de que o comparecimento eleitoral no país não é obrigatório por lei. Isso leva as campanhas a se ocuparem, inclusive, com a motivação para a participação eleitoral, associada à defesa de um eventual candidato, na tentativa de reverter o quadro de desinteresse identificado pela revista Time nas eleições de 2004, quando apenas 42% da população americana entre 18 e 29 anos se diziam “atentos às eleições”.
A limitação no uso da propaganda poderia representar, como a comparação com o caso norte-americano sugere, um freio ao florescimento do que os antropólogos Moacir Palmeira e Beatriz Heredia bem definiram como o “tempo da política” para descrever o momento em que a eleição começa no imaginário do eleitorado a partir da presença dos cartazes, camisas, brindes, auto falantes, caixas de som etc. Em meio às inúmeras “operações” coordenadas pela PF, gravações, indiciamentos, prisões, habeas corpus e demais jargões policiais e jurídicos que ocupam os meios de comunicação, povoando críticas e reforçando desconfianças antigas da população brasileira com relação a viabilidade da política enquanto espinha dorsal da vida nacional, o não envolvimento do eleitorado nas campanhas talvez seja um mal a ser combatido. Talvez sua adesão à política seja, igualmente, uma questão.
No entanto, nosso mal não parece ser análogo ao individualismo identificado na sociedade americana, expresso inclusive na sua legislação, onde o cidadão se vê “livre” para opinar ou não no processo democrático. A legislação eleitoral brasileira é imbuída da defesa de um ideal republicano traduzido na obrigatoriedade da participação eleitoral, momento em que a cidadania desperta para a existência de outras individualidades, com anseios e desejos próprios, que não apenas a sua. Dessa forma, o dilema aqui a ser combatido se refere muito mais a necessidade de medidas que tornem nossa república cada vez mais democrática do que a preocupação em convencer os cidadãos de que sua presença é importante, como o crescimento do número de eleitores e o incremento dos mecanismos eleitorais atestam.
Nesse processo, o objetivo é conciliar a atuação de instituições próprias do direito, bem localizadas pela Constituição de 1988 na democracia contemporânea, com a esfera da política. Compreender o papel democrático de corporações de fora do seu mundo, sem transformá-las em figuras “salvacionistas” que tornem o fazer propriamente político um exercício diminuto, torna-se o desafio real. Conforme sugere Luiz Werneck Vianna, o verdadeiro caminho para a consolidação da democracia no país se apresenta mediante a correta compreensão do papel dessa nova institucionalidade atribuída ao direito, aliada à construção de uma esfera pública reflexiva, que tematize os principais problemas da sociedade brasileira, devolvendo à política o seu lugar na ordem democrática.
Com isso, se o que entendemos por democracia é algo comprometido com o ideal de igualdade, o TSE parece tentar cumprir seu papel virtuoso e republicano ao controlar os abusos do poder econômico testemunhados em campanhas anteriores, tornando o acesso ao exercício da política mais justo. Depois de compreendido corretamente seu papel, resta apenas asseguramos que isso não nos faça perder de vista o necessário horizonte cívico da participação dos eleitores no “tempo da política”.
Agradeço os comentários e sugestões de Luiz Werneck Vianna, bem como a revisão criteriosa do texto realizada pelo colega Igor Machado Suzano, isentando-os, contudo, de eventuais distorções do argumento.
O presente artigo foi publicado originalmente no Boletim CEDES de julho/agosto de 2008, disponível no sítio do Centro de Estudos Direito e Sociedade.