O
regozijo viril da oposição, no qual se incluem figuras de vulto na
intelectualidade nacional, como o caso do ex-presidente Fernando Henrique
Cardoso, vem cobrando de Dilma Rousseff mais “comando”. Na prática, a armadilha
hermenêutica que campeia discursos eleitorais deita raízes também no andamento
do governo. Isso porque, (i) num primeiro cenário Dilma poderia adotar a
postura republicana de não intervir em demasia no curso das discussões
parlamentares, reservando-se ao posto de chefe do Executivo. Aliás, foi isso
que a presidenta fez ao longo da maior parte do seu primeiro mandato,
sinalizando positivamente que nosso tão propalado presidencialismo de coalizão
estaria caduco. Ao menos em parte. Não podemos ignorar que o talho é profundo e
a água segue um curso por vezes difícil de escapar. Dilma seguiu negociando,
cedendo, concedendo. Em outras palavras, seguiu alimentando velhas práticas que
há muito nos amarram. Mas as críticas que se faziam à época apontavam
precisamente sua postura “rígida”, “durona”, como um dado do excesso de
“comando”. Acredito que faltou tato, talvez na mesma proporção em que tenha
soçobrado o casamento de fachada com o PMDB. Michel Temer deveria, ao menos em
tese, ser o mediador no jogo parlamentar. Isso não se viu. Ainda assim, defendo
que até aqui caminhamos para frente, ziguezagueando, mas para frente. E
refiro-me não apenas aos governos Lula-Dilma.
(ii) Num
segundo cenário Dilma deveria ser mais atuante, mandar mais, ter mais
“comando”. Afinal, tudo tem indo para a sua conta (menos a derrota por 7 a 1
para a Alemanha, creio eu). O modo como lideranças da oposição e, o que mais me
incomoda, setores da opinião e a grande imprensa vêm retratando o andamento do
país é estranho. Repentinamente tudo passou a significar “derrotas” ou
“vitórias” (estas escassas, por certo), do governo. Acusada de perder o
“comando”, Dilma soma derrotas que num exame refinado são fracassos da
democracia, da representação e do Estado de Direito.
Isso
porque, ávida em acrescentar essas “derrotas” ao scout da partida, a
imprensa opta por retratar Eduardo Cunha como o mais influente político do
momento, negligenciando sua pauta corporativa, refratária ao diálogo, deletéria
em questões morais e, como a cereja do bolo, fortemente marcada por interesses
empresariais (falo dos planos de saúde – seus maiores doadores de campanha –, e
da mais recente bizarrice que a Câmara do Deputados protagonizou, a saber, o PL
4330/2004 que versa sobre as terceirizações).
Contudo,
em meio aos protestos que erraticamente passeiam pelas ruas de algumas capitais
(até tratores em defesa do agronegócio e caminhões contra o preço do frete
foram vistos), Renan Calheiros e Eduardo Cunha transitam ilesos, como figuras
quase impolutas que de maneira bem sucedida denunciam a ausência de “comando”
da presidenta. A elas a imprensa é só elogios, alimentando o ego de quem
escamoteia a representação. A eles os setores da opinião concederam uma espécie
de indulto “pró-impeachment”, como se dissessem: aproveitem enquanto
concentramos nossas energias em ver Dilma “sangrar” (tal como na
assertiva do senador Aloysio Nunes Ferreira, candidato a vice-presidente na
chapa de Aécio Neves nas últimas eleições).
Em
síntese, (i) no primeiro cenário Dilma é republicana, cumprindo bem seu
papel constitucional de chefe do Executivo, mas “durona”, sem tato nas
negociações com aliados; (ii) no segundo cenário Dilma é omissa, sem
“comando” e incapaz de conduzir o governo. Neste cenário o Congresso Nacional
pode fartamente rebaixar a agenda pública, pois a virilidade do “comando”
confere boas cores aos presidentes da Câmara e do Senado, cores estas ausentes
no retrato de Dilma Rousseff.
Curioso
constatar como aqueles que pensam sobre a política cedo acusam seu
encapsulamento em categorias formativas que talvez tenham sido superadas. Algo
que impede a leitura dos novos tempos, conferindo miopia analítica ou
preconceito. Há tempos o Executivo nacional, plasmado numa estrutura que dista
das modernas democracias representativas, figurava como o agente modernizador
contra o “atraso” de um Congresso corporativo, interesseiro, prócer na prática
do “achaque” (adorei a expressão mobilizada por Cid Gomes. Lembrou-me o bobo da
corte em “Noite de Reis” de Shakespeare, aquele que fala a verdade e todos riem
como se fosse brincadeira – “o rei tem uma amante”, risos).
Conforme
este diagnóstico, o Executivo seria o grande responsável pela modernização da
nação, conduzindo, quando dotado de “comando”, os assuntos públicos à revelia
do carcomido Congresso Nacional. Engano meu, por otimismo ou inocência, achei
que este cenário havia mudado. Imaginei uma distância menor entre a democracia
brasileira e o ideal normativo de representação, onde pudéssemos contar com um
Congresso “moderno”, ao lado de uma sociedade igualmente “moderna”, por que
não.
Todavia,
quando olho e ouço o que no momento vem recebendo o epíteto de “manifestações”,
onde “Dilma puta”, “Lula ladrão”, “Fora PT”, “Sonegação
não é corrupção”, “Intervenção militar já”, “A culpa não é minha,
votei no Aécio”, dentre outras afirmações grassam como palavras de ordem,
penso que parte da nossa sociedade não é assim tão “moderna”. E penso isso
talvez menos pelo que ouço e mais pelo que vejo (falo de uma senhora sendo
ofendida no calçadão de Copacabana, com enfáticos gritos de “filha da puta”,
“vagabunda ladrona” e bandeiras do Brasil sendo esfregadas na sua cara
por querer travar uma discussão em meio ao protesto contra o governo; este um
dos muitos exemplos).
Certamente
também não é “moderno” Eduardo Cunha e seus eleitores (menos os de fora da
Câmara, e mais os de dentro, afeitos à pauta corporativa que o parlamentar
ostenta, como o caso da permissão de viagens para as esposas dos deputados
denuncia). Novamente, meu ideal normativo de representação concebe o Congresso
Nacional como a caixa de ressonância dos problemas da sociedade brasileira, e
não como a barreira refratária ao diálogo (“legalizar o aborto? Nem por cima
do meu cadáver!”).
Dessa
forma, para não incorrer na mesma armadilha hermenêutica que há pouco aventei,
afirmo, peremptoriamente, mas ciente da falibilidade do que digo, que:
(1) Não
vejo, até o presente, motivo para impeachment. As associações entre
Dilma e Collor são equivocadas, anacrônicas e desonestas com a história. Mais
do que isso, a frase “A culpa não é minha, votei no Aécio” é tola. A
democracia não é um regime de adesão. Do contrário Dilma poderia governar
apenas para os que nela votaram, negando o acesso aos serviços públicos
concedidos pelo Estado aos demais. Fazer parte da comunidade política implica
aceitar os procedimentos que regulam a escolha dos governantes (o que não
impede, por certo, discordâncias e propostas de revisão);
(2) O
número de pessoas que vem aderindo às manifestações organizadas contra o
governo, ou mesmo seu matiz ideológico e as variadas origens sociais e de
classe, pouco importa para duas conclusões: (i) são manifestações da
direita, sim! A pauta é essa e a direita conseguiu agregar mais gente a ela; (ii)
são manifestações legítimas, que devem ser ouvidas, mas nas quais eclodem
práticas antidemocráticas, estúpidas e perfeitamente condenáveis, sem que isso
implique defesa do governo;
(3)
Rejeito em absoluto a descrição de que “o Brasil acordou” nas manifestações ora
em curso. Novamente isso é equívoco, anacronismo e desonestidade. É, ainda,
miopia analítica, pois ignora tudo o que vem ocorrendo no país nos últimos anos
por meio das novas formas de associação, combate, militância;
(4) A
grande imprensa e vários setores da opinião permanecem cínicos com o que
efetivamente ocorre: o Congresso Nacional vem progressivamente declinando ao
seu papel. Ao invés de enfrentar temas presentes na agenda pública – aborto,
descriminalização do uso de drogas, dentre outros –, os parlamentares optam por
algo mais perigoso do que o silêncio: eles falam em nome de interesses opacos,
de valores não tematizados. Concomitante a isso, é a falta de “comando” da
presidenta a grande responsável por tudo, conferindo mais “imunidade” do que de
costume aos parlamentares;
(5)
Nosso nó Górdio é a reforma política. Quanto a isso não conservo maiores
expectativas. Por isso concentro-me no que julgo ser seu tema maior: o
financiamento de campanhas. Sem defender se completamente público ou misto, o
fato é que não podemos mais aceitar o atual modelo, que permite, por exemplo, o
absurdo das doações por empresas;
(6) Não
acho que o maior problema da sociedade brasileira seja a corrupção. Ela é um
mal que precisa ser combatido. Todavia, a política é abertura para o futuro e
precisamos de uma direção. Todos são contra a corrupção, isso não é distintivo.
Trata-se de aprimorarmos os mecanismos de controle. Contrariamente, não são
todos a favor da redução da pobreza, da distribuição de renda, da taxação das
grandes fortunas, apenas para pegarmos alguns temas polêmicos;
(7) A
“Caixa de Pandora” foi aberta nas últimas eleições. Não é mais o momento de
saber quem começou, pois tanto PT quanto PSDB dosaram o mesmo veneno em busca
da vitória. O primeiro com o discurso da “luta de classes”, dos pobres versus
ricos; o segundo com um perigoso realinhamento eleitoral que desenterrou
antigas chagas (a defesa da redução da maioridade penal e da intervenção
militar são parte disso). Agora, como bem disse Werneck Vianna, é necessário “sair
da confusão” antes que ela nos engula a todos;
(8)
Isso porque, esse processo escancarou a ausência de um importante sentimento de
comunidade entre nós. A fragmentação da sociedade brasileira emerge contra o
fim do exclusivismo de classe, de uma “cidadania entrincheirada” (para
mobilizar a brilhante pesquisa de James Holston, “Cidadania insurgente”) que
agora convive com o diverso. Isso cobra mediação, cessão de posições. Não é
simples. Daí a necessidade de retomarmos a noção de comunidade contra a
fragmentação da sociedade. Algo que também não é simples.
Em
resumo, não acho que o problema é a falta de “comando” da presidenta, como tem
sido dito. Essa cobrança reedita alguns problemas que acreditava termos
superado (ou caminhado no sentido de), como aquele que opõe um Executivo viril
contra a passividade de um Congresso atrasado. Ao mesmo tempo, o governo
precisa, sim, rever alguns de seus posicionamentos, sobretudo quando transparece
certo estelionato eleitoral. Dilma precisa, sim, falar mais, se posicionar
mais. E Eduardo Cunha não é, jamais, nosso salvador (se é que isso existe).
Espero
ter contribuído para o debate ou, no limite, ter tomado uma posição nele.
Sempre aberto, é claro, ao diálogo.