Conversando com um amigo querido, jornalista virtuoso
e divertido, um dia após o vareio de bola que o Brasil levou da Alemanha, entoava
a ele um mantra: “a Copa tem um legado...” Sem que eu tivesse tempo para me
explicar, ele retrucou: “tomara que esse legado seja algo mais do que a fatura
do meu cartão de crédito”. Ele, arguto nas coisas do futebol, havia passado os
últimos dias em “turnê” pela Copa, atrás da Seleção, e agora receava o preço a
pagar. Eu, que logo depois do jogo já aventava minhas hipóteses, precisava de
só mais algumas horas para elaborar meu luto em texto.
Muito já se escreveu, tripudiou e teorizou. Da minha
parte, não vou “chutar cachorro morto”, e longe de mim querer ser o primeiro “rato”
e fugir de um navio que caminha com todo vapor ao naufrágio – como fez o agente
do Neymar, por exemplo. Mas tenho lá minhas questões e, porquê não, um post-scriptum honroso sobre o que
defendo ser o “legado da Copa” (sem qualquer conotação político-partidária...
pelo menos ainda).
1. (Thomas Müller, 11min.) Foi a maior derrota da
Seleção Brasileira, o que não significa que será a última. O jogo escancara uma
mentira há muito bem contatada – por mim, inclusive –, e que agora não mais se
sustenta. Desde a escolha de Felipão – mais ele do que Parreira, claro –, a CBF
começou a contar uma mentira que aceitamos e repetimos. Uma escolha segura –
dois ex-campeões – para o grande momento – jogar a Copa em casa. A mentira foi
endossada pela Copa das Confederações e ganhou uma sobrevida agora em 2014,
menos pela própria Seleção, e mais pelo desempenho equilibrado das demais
equipes. Até a semifinal, por certo. O fato é que o padrão técnico por nós
encampado carece da genialidade individual. Isso deu certo até aqui. Cinco títulos
provam isso. Contudo, parece não dar mais. Talvez essa seja a questão mais dramática,
e muitos dirão o contrário. Mas o fato é que à época da convocação dos
jogadores, poucos, um ou dois, foram contestados. Ainda hoje, depois da
derrota, não somos capazes de imaginar outro time. Logo, suponho, precisamos
imaginar outro jeito de jogar;
2. (Miroslav Klose, 23min.) A arrogância do nosso
futebol impressiona. Ela reverbera no comportamento diminuto da imprensa
nacional. A matéria de Tino Marcos e Mauro Naves sobre a partida, exibida na
manhã seguinte, resume exemplarmente essa questão. Ambos significaram a
derrocada dizendo que “os alemães jogaram de vermelho e preto, mas parecia que
eram os brasileiros”. Conversa! O Brasil nunca jogou daquela forma, e nunca
jogará. A não ser, claro, que esteja disposto a rever seu padrão tático
substantivamente, como anunciei há pouco. Não que seja essa a saída. Mas o futebol
se modernizou, e nós não. Num jogo com 22 atletas em campo, costumamos depender
de apenas um. Volto a dizer: tem dado certo. Porém, se entre 1970 e 1994 se
passaram 5 Copas, com 2014 já perdemos a terceira;
3. (Toni Kross, 24min.) A releitura dos gols endossa
esse ponto. No primeiro, que ao vivo aparentou erro de marcação, com calma vi
um “malandro” Miroslav Klose, em jogada perfeitamente ensaiada, barrar a
marcação de David Luiz sobre Müller. Gol de escanteio, com o pé, dentro da pequena
área. Erro crasso. Nos demais, passe, passada e finalização. Eficiente e
objetiva, a Seleção Alemã não protagonizou nenhum lance “mágico” (nos termos
que bem definem o que entendemos por futebol). A única exceção talvez tenha
sido o quinto gol, marcado após uma jogada de Sami Khedira que driblou curto,
tocou e recebeu de volta. O sétimo, um suposto “golaço” de Schürrle, contou com
o capricho do travessão para receber esse epíteto. Nada mais. Ou muita coisa;
4. (Toni Kross, 26min.) O argumento sobre um suposto “apagão”
da equipe explica a derrota apenas em parte. Num raciocínio contrafactual, se
esse jogo se repetisse 10, 20 vezes, nunca mais teríamos o mesmo placar. Ainda assim,
possivelmente testemunharíamos outras 10, 20 vitórias da mesma Seleção. A
Alemanha foi eficiente e soberana. Nós, desequilibrados, mais taticamente do
que psicologicamente. Ainda que psicologicamente também. Talvez com Neymar em
campo não evitássemos a derrota. Apenas evitaríamos o “apagão”, pois ele, nosso
“um” entre onze, garantiria a chance ilusória de reação pelo fator psicológico,
e não tático;
5. (Sami Khedira, 29min.) Individualizar a falha é um
erro. Fred é, sem dúvida, o maior “mico” da Copa. Entretanto, no jogo em
particular, foi Fernandinho, que vinha fazendo uma brilhante Copa, quem errou
nos gols 2, 3 e 4, respectivamente nos minutos 23, 24 e 26, fato que configurou
o suposto “apagão”. Não por acaso foi sacado no intervalo, visivelmente
abatido. Isso não significa que a culpa é de um. Fomos atropelados por um time
superior taticamente e tecnicamente, com menção especial para o grande jogador
Toni Kroos, que apesar de craque, não é "um" entre onze;
6. (André Schürrle, 69min.) Quando critico o futebol
do passado que apresentamos, critico a CBF. Malgrado as escolhas que se fizeram
anteriormente, vimos um planejamento que envolvia folgas, “treinos”
regenerativos na piscina e treinos recreativos para “esconder” o esquema tático
da imprensa e, por conseguinte, dos adversários. Disse o “gaiato” que Felipão
escondeu tão bem o esquema tático, que nem ao menos os jogadores tomaram
conhecimento de sua existência. É mentira comparar nossa derrota de agora ao
que sofreram os alemães em 2006 e 2010. Eles foram capazes de reinventar seu
futebol olhando para seus erros. Nós preferimos esconder os nossos nos erros
dos outros. E com isso não aceito a esquiva de que quem perdeu foi a Seleção, e
não o Brasil. Se “somos todos um só”, perdemos juntos;
7. (André Schürrle, 79min.) Vi uma Seleção Alemã
respeitosa. Não pelos pedidos de desculpas após o jogo, que me soaram cínicos
no momento. Gostei das declarações do técnico J. Löw sobre a pressão de se
chegar à final jogando em casa. Fora isso, só hoje consigo aceitar uma suposta
simpatia do Podolski pelo Brasil, que ainda me soa um misto de cinismo com
estratégia para assegurar a torcida ao seu lado. Sentimento que radica, por
certo, na dor da derrota. Mas, o que se há de fazer? O respeito que há pouco
aludi se explica pelos 7 gols marcados. Nós, se por algum realismo fantástico,
abríssemos 2 ou 3 gols de frente, manifestaríamos nosso “apreço” pelo
adversário com dribles, lances de “olé” e show para a torcida. Eles, deram
passe, passada e finalização em gol. Confesso que me senti respeitado pela
dignidade, eficiência e capricho com os quais os alemães nos golearam;
Post-scriptum. (Oscar, 90 min.) O que de positivo vi?
Poderia dizer que achei o choro do David Luiz – grande jogador – honesto. Contudo,
opto pelo modo como a Copa no Brasil escancarou o atraso da CBF, por um lado,
com seu “presidente-bicheiro”, seu assessor de imprensa destemperado, seu
planejamento equivocado, mas seguido à risca, e escancarou, por outro lado, a
própria FIFA. Desde o debate travado por Romário à época da votação da “lei
geral da Copa”, passando pela recusa de Aldo Rebelo em se curvar perante a
arrogância de Jérôme Vacke, pelas “Jornadas de junho de 2013” e o #NãoVaiTerCopa,
até chegarmos no escândalo da venda de ingressos desmascarado ela Polícia
Federal, podemos dizer: o Brasil não “arregou”. Eleitoralmente, a derrota será
nula, como a vitória o seria. Na prática, compro o ponto do Juca Kfouri sobre
as relações promíscuas estabelecidas entre a FIFA e as federações nacionais,
que aqui encontraram barreiras, seja numa sociedade civil pululante, seja no
próprio aparelho coercitivo do Estado.
Gosto de futebol e torci a favor da Copa. Foram
grandes jogos. Ainda faltam dois. Não concordei com boa parte do teor dos que a
ela se opuseram. Ainda assim, vejo nisso tudo um legado e torço, muito, para
que ele seja algo mais do que a estrondosa fatura do cartão de crédito do amigo
boleiro.